Utilidade pública

Eu faço parte de um grupo de estudos da bíblia. Há de tudo entre nós: católico, protestante, agnóstico, espírita e ateu. Lemos a bíblia por uma perspectiva social, histórica e literária. Quem nos conduz é o Gabriel. Gabriel tem 78 anos e é uma das minhas pessoas preferidas no mundo. Foi padre, fez doutorado no Vaticano, é jornalista. Lê em diversas línguas. Inclusive em grego e aramaico. Não crê em Deus. Mas acredita no amor, que dá quase na mesma.

Estamos estudando os sinóticos. Os sinóticos são os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. São chamados assim porque têm uma boa parte das histórias em comum, com mesmo conteúdo, linguagem e estrutura. A mesma visão. Sinótico quer dizer “ver junto” em grego. A gente coloca os textos dos três primeiros evangelhos em paralelo e compara um com o outro.

No nosso último encontro (o primeiro virtual em mais de dois anos) falamos, entre muitas outras coisas, sobre a parábola da figueira estéril. Essa parábola aparece nos três evangelhos (nem sempre isso acontece). Mas em cada um deles é tratada de uma forma diferente.

Em Mateus e Marcos Jesus é o protagonista da parábola. Nos dois evangelhos a história é que Ele estava com fome e quando chegou na cidade viu uma figueira. Se aproximou para pegar um figo e ela tinha apenas folhas. Jesus fica bravo e diz: “nunca mais produzirá frutos”. E a figueira seca na hora. Há apenas uma diferença entre Mateus e Marcos. Em Marcos o autor faz questão de dizer que não era tempo de figo, por isso só tinha folhas. Vai explicar isso para alguém com fome.

Em Lucas o final da história é um pouco diferente. E o personagem não é mais Jesus.

“Um certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha, e foi procurar nela fruto, não o achando; E disse ao vinhateiro: Eis que há três anos venho procurar fruto nesta figueira, e não o acho. Corta-a; por que ocupa ainda a terra inutilmente? E, respondendo ele, disse-lhe: Senhor, deixa-a este ano, para que eu passe a enxada ao seu redor e aplique estrume; E, se der fruto, ficará e, se não, depois a mandarás cortar.

Lucas 13:6–9

Essa história da figueira sempre me incomodou. Eu ficava pensando o que deixou Jesus tão bravo a ponto de secar uma árvore? Sendo que nem era tempo de dar frutos? Pode ter sido a fome, pode ter sido o cansaço (ele vinha de uma jornada exaustiva). Eu gosto da solução de Lucas: me dá mais um tempo, quem sabe com mais cuidado ela consegue dar frutos.

A fascinação pela produtividade é algo doido. Precisamos ser úteis o tempo todo. Estar produzindo frutos. Devo ter recebido uma centena de dicas sobre “o que fazer durante a quarentena”, “como entreter as crianças”, “museus abertos”, “livros gratuitos”, “cursos livres”.

O mundo parou. Mas parece que a gente precisa continuar. Temos que fazer algo útil durante a quarentena. Claro, sem esquecer que trabalhamos umas oito horas por dia, limpamos a casa mais vezes e melhor, cozinhamos, cuidamos de duas crianças (no meu caso). Isso tudo enquanto testemunhamos a história e vemos uma pandemia mudar o mundo como o conhecíamos.

O medo de alguém olhar para nós e ver apenas uma figueira com folhas nos aterroriza. E se estivermos sem frutos? Parece que somos apenas bons enquanto somos úteis. Ou produzimos. Nosso valor está no fruto e não na árvore que somos (agora você lembrou da árvore somos nozes? eu também).

Isso permeia todo o discurso que nos cerca. Por que o presidente acha que se morrer alguns idosos não tem problema? Porque idoso não dá mais fruto. Por que os que querem diminuir a pandemia fazem tanta questão de reiterar que as pessoas que morrem já tinham alguma doença preexistente? Porque as pessoas doentes têm menos valor, produzem menos. Por que durante o nazismo os primeiros a serem queimados nas câmaras de gás foram as pessoas com deficiência? Elas não produziam como os ditos “normais”.

A produtividade como valor nos define como sociedade. Um dos grandes problemas dos ditos cristãos com os homossexuais? Eles não dão fruto, vulgo, filhos. Por que as crianças não são tratadas como prioridade absoluta? Elas não trabalham, não votam, não produzem.

Nessa loucura que estamos vivendo eu quero ser apenas uma figueira sem frutos. Uma árvore. Plantada, com raízes. Me alimentando da terra. E sendo uma árvore. Apenas sendo. Quero ter o tempo de viver a angústia. De sentir medo. De temer pelo futuro. De sonhar com mudanças. De respirar. Sem me preocupar se alguém vai perceber que estou sem frutos. Não tenho nada para oferecer. Posso apenas ser. Sejamos.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça

* Publicado originalmente no Medium.

Somos movidos por afetos. Um abraço apertado. A música que alegra a alma. O beijo da pessoa amada. São esses momentos que nos dão potência de vida para agir no mundo. O filósofo Espinosa chamava isso de bom-encontro. Quando nos tornarmos mais próximos de nós mesmos e dos outros.

Há os afetos tristes. Ter que se encontrar com alguém desagradável. Ficar doente. Quando somos afetados por esses momentos nossa potência de agir diminui. Parece que nos afastamos de nós mesmos e dos outros. São, o que podemos chamar, de encontros ruins.

O fascismo e o racismo são sistemas que se baseiam no afeto do ódio. Na padronização do que é ser humano, do que é ser cidadão, do que é “normal”. Há hierarquia. Há pessoas descartáveis e pessoas que se adequam. Há corpos matáveis e corpos que o Estado protege.

Que encontro é possível nesses afetos de ódio? Que encontro é possível em uma pandemia em que vemos irmãos sem conseguir respirar? Ou mortos com tiros nas costas?

Há um tempo eu escrevi um texto sobre a impossibilidade da empatia. Por mais que desejamos nos colocar no lugar do outro isso é impossível. Eu não posso sentir como o mundo te afeta. Porque eu não posso ser você.

Se a empatia não é possível, qual é o encontro possível? Eu vejo um caminho. O caminho do ouvir. É necessário uma disposição para alargar a nossa perspectiva e incluir outros pontos de vistas. E isso só é possível com a escuta ativa e com a imaginação.

Nós somos radicalmente diferentes. Não há um humano igual a outro. Mas podemos comunicar nossas diferenças uns aos outros. Não precisa de empatia, nem de simpatia. Precisa apenas ouvir. E respeitar. Não tolerar, porque a tolerância é um laço frágil demais. Especialmente nesse mundo liberal em que vivemos. A tolerância só existe até o momento do incômodo.

Mas ao ouvir podemos imaginar. Podemos usar nossa imaginação como mediadora dos nossos afetos com o mundo. E entender que aquele outro é um sujeito digno em si. Porque eu também sou. Assim a gente consegue imaginar um novo mundo em que cada um é potencializado pela força dos bons encontros, dos afetos que nos levam a agir com amor ao mundo e ao outro. Porque no mundo da minha imaginação, nesse mundo alargado em que cabem todos, o fascismo e o racismo não são possíveis.

“O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (Espinosa, Ética III).

Foto de capa: Freepick/Reprodução