Líder de jovens na congregação evangélica Assembleia de Deus do Amor, no bairro dos Bultrins, em Olinda (PE), Angélica Cruz, 29 anos, está em pelo menos quatro grupos da igreja no Whatsapp. Diz que a maioria serve para troca de mensagens devocionais entre membros e a liderança. “O aplicativo virou uma ferramenta principal de comunicação na pandemia. Serve pra gente trocar mensagens de apoio e informações entre os irmãos, como vagas de emprego e oportunidades”, contou à Agência Pública.
O uso intenso do Whatsapp para a prática religiosa fortalece redes de desinformação no segmento evangélico, segundo relatório de pesquisa “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado em primeira mão pela Pública. A live de lançamento do relatório será no dia 30 de agosto, no canal do Youtube do Instituto de Estudos da Religião (ISER), às 14h.
A pesquisa mostra que 49% dos evangélicos da amostra receberam mensagens de conteúdo falso ou enganoso em grupos relacionados à sua religião. Isso quer dizer que praticamente a metade dos evangélicos entrevistados receberam notícias falsas enviadas em grupos da sua comunidade de fé.
Wagner Tadeu Tonel/Agência Pública
Os dados consideram 1650 respostas coletadas em congregações Batistas e das Assembleias de Deus e grupos de diálogo do Rio de Janeiro e do Recife. Também foi aplicado formulário online com pessoas de todas as religiões e sem religião. Essa coleta aconteceu em 2019.
Na pesquisa online, com abrangência nacional, participaram pessoas de diferentes religiões e com nível superior – o segmento que possui maior percepção em relação à circulação da desinformação. Nesse grupo, os dados sobre o recebimento de notícias falsas em grupos ligados à religião foram ainda maiores, com 77,6% dos evangélicos tendo afirmado receberem desinformação por grupos ligados à sua religião no Whatsapp. Em comparação, a coleta de dados online mostrou que 38,5% dos católicos, 35,7% dos espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido mensagens falsas nos grupos de suas religiões.
Sobre o uso do Whatsapp especificamente, a pesquisa aponta que entre os evangélicos, 92% participam de grupos ligados à sua religião no WhatsApp. Em comparação, 71% dos católicos, 57% dos espíritas e 66,7% dos fiéis de outras religiões entrevistados, disseram fazer o mesmo. “Não é a religião que interfere na maior presença de desinformação nos grupos de WhatsApp dos evangélicos, mas elementos relacionados à prática da religião, como o uso das redes sociais”, apontou o coordenador da pesquisa, o sociólogo e diretor do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, Alexandre Brasil.
Um desses elementos mapeados pelos pesquisadores seria a confiança interpessoal. Para 33,3% dos evangélicos entrevistados, pessoas conhecidas são mais consultadas como fontes de informações do que veículos jornalísticos e/ou mecanismos de busca na internet. E 13,2% disseram que os pastores e irmãos da igreja representam a fonte mais confiável de notícias. “É importante lembrar que onde circula informação também circula desinformação. Não há como evitar que esses fluxos de mensagens circulem de forma separada, pois o intuito é que tenha aparência de informação confiável. O uso intenso do WhatsApp, somado à uma forte presença da confiança interpessoal são fatores que parecem sim tornar os evangélicos, em algum nível, suscetíveis à desinformação”, explicou Alexandre Brasil.
Não checam e não se incomodam
O pesquisador explica que a pesquisa partiu da hipótese de que grupos onde há maior organicidade e confiança entre os participantes, são potencialmente espaços em que há maior circulação de desinformação. O grupo religioso, no caso o evangélico, foi escolhido por ter o perfil de uma “intensa vida comunitária, pela presença de laços de confiança e pela realização de reuniões regulares.” “Também se considerou a existência de reportagens que indicavam sites e influenciadores ligados ao segmento evangélico como destacados disseminadores de fake news”, acrescentou.
O relatório também ressalta que os evangélicos têm uma grande representatividade nas decisões eleitorais, considerando que 31% da população brasileira se declara evangélica, segundo Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), realizado em 2018.
Entre os respondentes, 23,6% dos evangélicos disseram não ter o costume de checar notícias. De acordo com o relatório, quase 30% dos evangélicos entrevistados admitiram que já compartilham notícias falsas, sendo que 8,1% fizeram “mesmo sabendo que era mentira, mas por concordarem com a abordagem”.
“Os menos preocupados seriam pessoas de mais idade, menor escolaridade, menor renda e com menores habilidades no uso de dispositivos eletrônicos (capacidade de editar conteúdos de vídeo, áudio e imagens ou administrar perfis). Por outro lado, não é possível afirmar, a partir dos nossos dados, que pessoas com maior renda, maior escolaridade e com maior habilidade para o uso de dispositivos eletrônicos veiculem menos mensagens falsas”, explicou Alexandre.
A confiança na pessoa que enviou a mensagem basta para que se encaminhe a notícia falsa a outras pessoas, diz o pesquisador. “Entre os evangélicos entrevistados, identificamos que, para um terço, a confiança no emissor é o fator que consideram para validar uma mensagem recebida como autêntica”
Com relação aos conteúdos, 61,9% dos evangélicos entrevistados disseram que notícias falsas com temas políticos são as mais recorrentes. Alexandre Brasil conta que quando o projeto de pesquisa foi apresentado, ainda “não se tinha percepção da escala e da centralidade que a disseminação de desinformação tomaria no Brasil durante o pleito eleitoral”, quando os eleitores evangélicos foram fundamentais para a vitória de Jair Bolsonaro.
Wagner Tadeu Tonel/Agência Pública
A saúde foi outro tema indicado como recorrente. Contudo, os dados não se relacionam diretamente com o quadro de “desinfodemia”, ou seja, desinformação específica sobre a covid-19 e a crise de saúde pública, porque foram colhidos antes da pandemia.
A Pública vem mostrando as conexões entre essas redes de desinformação, tanto com evangélicos conservadores quanto com outros segmentos aliados ao governo. As reportagens revelam que grupos de WhatsApp e de outras redes sociais continuam sendo utilizados para fazer circular conteúdos falsos, como propagandas antivacina e discursos negacionistas na pandemia. Também para reverberar ataques à democracia, a defesa do voto impresso e outras narrativas bolsonaristas.
O combate à desinformação nas redes evangélicas também tem sido feito pelo Coletivo Bereia, pioneiro no Brasil em verificações de fakes news nesse segmento. A iniciativa de jornalistas cristãos faz parte da Rede Nacional de Combate à Desinformação. “O Coletivo Bereia foi criado em outubro de 2019 (ano da coleta de dados da pesquisa) a partir da demanda de ação que os resultados da pesquisa da UFRJ impôs. Consideramos o projeto uma prestação de serviço identificada como jornalismo colaborativo de checagem de conteúdo especializado em religião. Desde o primeiro mês de atuação os resultados de público e parcerias foram altamente positivos, o que atribuímos ao ineditismo e a extrema relevância desta atividade”, diz Magali Cunha, jornalista e pesquisadora de Comunicação e Religiões, que coordena o coletivo.
O pesquisador da UFRJ, Alexandre Brasil diz que não é possível fazer uma associação direta entre os resultados da pesquisa e as redes de desinformação bolsonaristas, mas acredita que há “um direcionamento e um investimento do presidente em relação ao público evangélico”, que representa uma base importante do seu governo e “tem mobilizado tempo e manifestações concretas de atenção, tanto em seus discursos (de Bolsonaro), nas nomeações ou sinalizações ao eleitorado e suas lideranças como no caso da indicação ao STF (do advogado geral da União e pastor presbiteriano André Mendonça), ou ainda na presença de personalidades ligadas ao segmento evangélico nos ministérios”.
Grupo de WhatsApp é o novo ir à igreja
O relatório da UFRJ mostra ainda que a tríade da vida cristã digital é composta por aplicativos para leitura da Bíblia, WhatsApp e Google. São esses os principais aplicativos usados pelos evangélicos entrevistados. E, se a ida frequente à igreja é algo que caracteriza os evangélicos, o envolvimento com a comunidade de fé via grupos de WhatsApp passou a ser um diferencial desse segmento em relação aos outros segmentos religiosos e à média da população brasileira. “Esse achado é anterior à pandemia, mas certamente se ampliou nesse novo contexto. O ponto central que o relatório indica é que grupos com níveis de organização semelhantes, com forte vida comunitária e laços fortes de confiança também são mais suscetíveis às fake news”, diz Alexandre, que aponta para a necessidade de uma ação intencional de formação de usuários que atuem de forma crítica em relação às mídias digitais. “A busca de uma leitura crítica implica em ir além da capacidade de uso das ferramentas digitais e envolve uma perspectiva ampla sobre a realidade e as implicações prejudiciais que representam a disseminação das mentiras. Suas ameaças à saúde pública, à integridade das pessoas e mesmo à democracia representam uma realidade preocupante”, alerta.
Reproduzimos, na íntegra, a reportagem publicada pela agência de jornalismo investigativo Pública, na qual o Coletivo Bereia foi ouvido através de sua editora-geral, Magali Cunha, e da jornalista Juliana Dias. Além da fala das especialistas, foi citado também o trabalho de verificação de fatos feito por Bereia durante a pandemia do coronavírus que identificou desinformação em matérias do site Pleno.News.
*Publicado originalmente pela Agência Pública. Reportagem assinada por Ethel Rudnitzki e Laura Scofield.
“Sol forte pode matar coronavírus em 34 minutos.” Essa é uma das manchetes enganosas publicadas pelo site Pleno.News durante a pandemia de coronavírus.
O site, que promete em seu slogan “notícias de verdade”, é na realidade “um dos portais religiosos que mais publica material desinformativo”, segundo a jornalista Magali Cunha, doutora em ciências da comunicação e integrante do Coletivo Bereia – uma iniciativa de checagem de fatos publicados em mídias religiosas. O Bereia já encontrou diversos conteúdos falsos, enganosos e imprecisos nos textos do portal, segundo a pesquisadora. “A questão não é fake news apenas, é desinformação. Que confunde, direciona”, explica.
Fundado em 2017, o Pleno.News representa a nova cara do Grupo MK – uma das maiores empresas de mídia evangélica no país –, que tem investido em canais digitais e tem conexões políticas notórias.
Conhecido pela atuação no ramo da música gospel – com a gravadora MK Music e a Rádio 93 FM –, o grupo pertence à família do senador Arolde de Oliveira, presidente do PSD no Rio de Janeiro. Sua esposa, Yvelise de Oliveira, é a CEO da empresa e a filha, Marina de Oliveira, é uma das principais artistas agenciadas pelo grupo, que também é responsável por lançar no cenário da música gospel nomes como Aline Barros, Fernandinho, Bruna Karla e a deputada e pastora Flordelis, que recentemente recebeu muita atenção da mídia por estar sendo acusada de assassinar o marido.
Com a chegada da internet e dos suportes digitais, a receita da MK – que era majoritariamente gravadora de CD/DVD – caiu muito e a empresa decidiu mudar seus investimentos. “Nós construímos então todas essas plataformas e nos tornamos em uma empresa essencialmente digital”, disse em entrevista à AgênciaPública o senador Arolde de Oliveira.
Aproveitando a credibilidade e a fama que a MK tinha entre o público evangélico, a empresa decidiu fundar então o Pleno.News, no qual a maioria das publicações é voltada ao noticiário político nacional sob a ótica conservadora – e por vezes enganosa –, deixando em segundo plano o cenário gospel. Além do Pleno, a MK passou a oferecer serviços digitais como a monetização e administração de canais de YouTube – MK Network. Entre os clientes estão artistas gospel e políticos como o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos).
Desde agosto de 2018, a MK News gerencia o canal do YouTube do filho do presidente “de forma a potencializar o número de visualizações e inscritos”, conforme anunciado pela empresa. O canal de Flávio recebeu dinheiro público em anúncios da Secretaria de Comunicação do governo federal, como revelamos nesta reportagem. “A chegada do Flávio tem um grande significado, um marco nessa virada [digital]”, afirmou na época o deputado federal Arolde de Oliveira.
Além de Flávio, a MK presta esse serviço para outros três parlamentares – o senador Álvaro Dias, o próprio Arolde de Oliveira e a deputada Flordelis, em seu canal musical. Questionados, os parlamentares não responderam sobre a vigência de seus contratos com a MK, os serviços prestados e a origem dos pagamentos. A reportagem não encontrou registros de uso de dinheiro público para a contratação da MK pelos deputados.
Arolde, Bolsonaro e MK: uma só campanha
A radicalização política do Grupo MK coincide com a aproximação do senador Arolde de Oliveira à família Bolsonaro. Deputado constituinte e convertido à Igreja Batista, o atual senador foi um dos primeiros parlamentares a representar a bancada evangélica no país. “O orgulho em ser evangélico vem do fato de que deixamos de ser minoria”, revelou em entrevista à repórter Andrea Dip para o livro Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. “No meu primeiro mandato, nós éramos meia dúzia de evangélicos”, lembrou, projetando que o segmento seria um terço da Câmara na legislatura seguinte.
Apesar de representar uma parcela conservadora da sociedade, Arolde passou por quatro legendas em sua carreira (PDS; DEM, antigo PFL; PSC e PSD), todas ligadas ao chamado “centrão”. Foi deputado federal pelo Rio de Janeiro de 1984 até 2018, mantendo relações próximas com políticos cariocas como Anthony Garotinho e Pezão.
Em 2018, contrariou a cúpula de seu partido (PSD) para apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. Com um discurso de negação da velha política, foi eleito senador ao lado de Flávio. “Nós [Arolde e Jair Bolsonaro] temos o mesmo pensamento, a mesma formação. Ele é capitão do Exército, eu sou capitão do Exército. Depois eu fiz economia, engenharia, outros cursos, mas o pensamento é o mesmo, e continua o mesmo”, comparou.
Em foto publicada nas redes sociais, Flordelis e Arolde de Oliveira declaram apoio a Jair Bolsonaro na campanha pela presidência.
A proximidade de Arolde com Bolsonaro fortaleceu tanto a campanha eleitoral do senador quanto a do próprio presidente. “A estratégia da campanha dele [Bolsonaro] era manter o discurso e usar rede social, que era onde ele tinha espaço. Ele não tinha espaço na mídia vertical intermediada e tradicional”, conta Arolde, que participou de reuniões da pré-campanha do candidato à Presidência. Ele revela que usou a mesma estratégia na sua campanha para senador. “Fui para o Facebook e impulsionei para o público evangélico. Mandei mensagem para o conservador”, disse.
A aproximação com os políticos – em especial os do clã Bolsonaro – também faz parte da marca do Pleno.News. Em editorial publicado no dia 8 de abril, a editora-chefe do portal, Virgínia Martin, escreveu: “Se eu defendo Bolsonaro? Sim. Somos Pleno.News. E somos todos pela figura incomum deste presidente”.
A imagem de Bolsonaro é usada também para promoção do portal, que tem investido nas redes sociais. “Notícias do presidente Bolsonaro e do governo sem fake news”, diz um dos dez anúncios do Pleno.News veiculados entre janeiro e junho de 2020 no Facebook.
Anúncios veiculados pelo site Pleno.News no Facebook entre janeiro e junho de 2020 não escondem apoio do portal ao presidente Jair Bolsonaro
A jornalista Juliana Dias, integrante do Coletivo Bereia, foi coordenadora do portal ElNet, que precedeu o Pleno.News em 2002. Ela afirma que os conteúdos de cunho político se tornaram mais explícitos no site recentemente.
“A lógica era sempre produzir notícias relacionadas com temas da fé cristã, […] uma lógica de repercutir notícias atuais com uma ótica religiosa, mas não havia tanto partidarismo”, recorda. “Não é uma questão de defender o presidente Bolsonaro, nós damos notícias conservadoras”, defende o senador e dono do Grupo MK, Arolde de Oliveira.
A pesquisadora Magali Cunha rebate o argumento de Arolde. Para ela, a campanha de Bolsonaro foi “nitidamente articulada por grupos como o MK”, com forte participação de portais de notícias religiosas, como o Pleno.News, além de outros exemplos, entre eles o Gospel Prime, o Gospel Mais e o Conexão Política. “Tanto que o governo Bolsonaro financia esses portais por meio de anúncios pagos com dinheiro público até hoje”, analisa.
O Pleno.News veicula banners de anunciantes e os vídeos no YouTube que são monetizados com propagandas financiadas com dinheiro público. No ano passado, o site veiculou anúncios da campanha Nova Previdência, da Secretaria de Comunicação do governo (Secom).
O apoio a Bolsonaro fica claro também na participação de representantes do portal em eventos de comunicação de projetos do novo governo. Durante o lançamento da campanha “Aqui é Brasil”, em dezembro de 2019, a diretora financeira do grupo MK, Cristina Xisto, tirou fotos com o presidente Jair Bolsonaro e com o então ministro da Justiça Sergio Moro. O Pleno.News fez uma matéria sobre o evento.
As desinformações e escândalos do Grupo MK
Recentemente, o Pleno.News inaugurou colunas sobre política escritas por deputados bolsonaristas. Antes deles, os únicos políticos que assinavam textos de opinião no site eram o senador Arolde de Oliveira e o pastor Silas Malafaia, escrevendo majoritariamente sobre temas morais e religiosos.
Os novos colunistas do portal, Bia Kicis e Carlos Jordy, são acusados de envolvimento em redes de desinformação e começaram a escrever para o portal em julho deste ano. A deputada é alvo de dois inquéritos no STF que apuram, respectivamente, a disseminação de notícias falsas e a organização de atos antidemocráticos. Nesse último, ela, o senador Arolde de Oliveira e outros três deputados tiveram seus sigilos bancários quebrados a pedido do ministro Alexandre de Moraes.
Para o senador, ambos os inquéritos – sobre fake news e atos antidemocráticos – fazem parte do que ele chama de “aparelhamento do Estado”. “É o ativismo político de ministros do Supremo – o STF é uma instituição, mas alguns ministros estão fazendo essas coisas.”
O Pleno.News tem dado destaque a esse tipo de crítica contra ministros do Supremo. Na ocasião da quebra de sigilo de parlamentares no contexto do inquérito das fake news, o site deu ênfase às críticas de apoiadores do presidente: “Usuários de rede social pedem prisão de Alexandre de Moraes”, destacava uma manchete. Quando o ministro pediu o bloqueio de contas de Twitter de apoiadores do presidente, o site publicou “Web se revolta com censura e acusa: #STFVergonhaMundial”.
Corrente de Whatsapp divulga o portal Pleno.News ao lado de sites de fake news em oposição a veículos de imprensa
A pandemia de coronavírus também tem tido cobertura de destaque no portal. “Coronavírus – tudo que você precisa saber”, anuncia a página inicial do site. Porém, o portal tem veiculado uma série de conteúdos desinformativos sobre o tema, conforme relata Magali Cunha. Notícias sobre perseguição de cristãos na China, por exemplo, foram impulsionadas reativando um antigo debate sobre o comunismo. “Nessas narrativas, a China é colocada como o ‘lado do mal’, com o vírus vindo de lá”, explica.
Conteúdos parecidos foram publicados também pelo site da Rádio 93 FM, outra empresa do Grupo MK, e no Twitter do senador Arolde de Oliveira. No dia 11 de agosto, em um tuíte no qual se refere ao covid-19 como “vírus chinês”, o parlamentar questionou o número de mortes causadas pelo coronavírus no Brasil. A postagem compara os óbitos registados no ano passado com os deste ano, mostrando que a diferença é menor do que os 100 mil. Além de ela não revelar a fonte dos dados, agências de checagem mostraram que esse tipo de comparação é enganosa. Ainda assim, a publicação recebeu mil curtidas e 300 retuítes.
O senador rebate as acusações de fake news. “O Pleno é um canal conservador, só que as notícias são curadas. Nós não temos notícias mentirosas. Não temos fake e nós citamos a fonte”, afirmou.
Além das acusações de fake news, dois escândalos recentes envolveram artistas da gravadora MK Music. Investigações da polícia apontaram que o celular do pastor Anderson Carmo, que teria sido assassinado a mando de sua esposa, a pastora Flordelis, estava na casa de Arolde de Oliveira no dia do crime. Na época, Flordelis ainda tinha contrato com o selo. Segundo a polícia, o aparelho do pastor chegou a ser conectado ao wi-fi da residência. Arolde se disse “chocado e sem chão” diante da investigação, que ainda está em curso.
Questionado sobre a polêmica, o senador disse que a empresa está afastada de Flordelis desde o assassinato e que, com o indiciamento, o contrato com a pastora deve ser rescindido. “Era uma relação estritamente comercial que tínhamos com os cantores”, esclarece.
Com conteúdos de forte pauta moral, a MK Music lançou um clipe da cantora gospel Cassiane, acusado de romantizar a violência contra a mulher. Na produção, uma mulher sofre agressões do marido alcoólatra, mas entrega uma Bíblia e um bilhete dizendo que o perdoa, em vez de denunciar o agressor. Depois de ter recebido críticas, a cantora disse que o roteiro foi desenvolvido por Mariana de Oliveira, filha de Arolde. Uma nova versão do clipe foi lançada. Nela, a mulher agredida liga para o 180.
Grupo MK foi precursor no uso político de mídias evangélicas
Segundo Magali Cunha, conteúdos de cunho político começaram a ser propagados por portais religiosos no Brasil, de forma mais assertiva, a partir de 2010. “Naquela época acabava de ser introduzido o Plano Nacional de Direitos Humanos 3, que continha forte discussão da questão de gênero e aborto. Isso provocou reação de grupos religiosos conservadores, com uma onda de conteúdos contra a ex-presidente Dilma Rousseff, que se perpetuou até o impeachment”, recorda.
Em coluna publicada no dia 16 de julho, o senador Arolde de Oliveira corrobora essa tese. “A nossa causa [evangélica] requer a adoção de um esforço consciente e coordenado de todas as correntes contrárias ao processo de destruição encampado pelo governo a partir de 2003”, escreve. No texto, ele coloca como inimigos grupos como o Foro de São Paulo, se opõe a medidas como o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 e ainda cita o mito do “kit gay”.
Mas, antes mesmo da fundação do Pleno.News, o grupo MK já veiculava conteúdos políticos em suas mídias. No início dos anos 2000, a empresa tinha uma revista impressa chamada Enfoque Gospel, na qual publicava conteúdos conservadores. A edição 16 da revista, de novembro de 2002, trazia como matéria de capa uma reportagem sobre o recém-eleito presidente Lula. “O que os evangélicos esperam dele” era a manchete.
Na rádio do Grupo MK, a 93 FM, “havia um trânsito intenso de políticos como Silas Malafaia, Magno Malta, Garotinho”, recorda Juliana Dias. Os artistas agenciados pela empresa também eram convidados a participar de eventos de entretenimento com cunho político. “Lembro muito do apoio que Garotinho teve dentro da rádio e pelos cantores gospel agenciados pela MK. Isso também aconteceu com o Pezão, Sérgio Cabral”, conta.
O Grupo MK de Comunicação, que hoje permanece no rádio e no ambiente digital, já passou pela televisão. De 1999 ao início de 2007, a RedeTV! exibia semanalmente o programa Conexão Gospel. No programa, o então deputado federal Arolde de Oliveira conduzia o quadro “O cristão e a política”, em que respondia a “questões sobre cidadania” do público e se posicionava politicamente – especialmente a partir da eleição de Lula em 2003.
Em um programa de 2006, ano de eleições presidenciais, Arolde fez um pedido: “Que o leitor vote corretamente e elimine tudo aquilo que ele aprendeu, que ele conheceu nesse período de corrupção, e sabe exatamente como deve votar. Nós não vamos perder essa chance, se Deus quiser”.
O número 2502, da caixa postal e final do telefone do programa, constantemente repetido pelos apresentadores, foi também o número com o qual Arolde de Oliveira concorreu e venceu a todas as eleições que disputou entre 1994 e 2010.
Em entrevista à Pública, o senador admite que o uso do número no programa e na rádio fez parte de uma estratégia de comunicação. “A cultura do número subliminarmente na cabeça das pessoas. Associava a imagem ao nome. Quando chegava na eleição, era muito fácil as pessoas lembrarem.” Ele se defende dizendo que na época não havia proibição quanto a isso. “Nunca fiz em eleição o que não fosse permitido, nunca tive problema com a Justiça Eleitoral.”
A canção de abertura do quadro “O Cristão e a Política”, gravada por artistas da MK, se tornaria slogan e jingle para o candidato.
“Unidos pelo amor construiremos um Brasil melhor. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, postou Arolde em 2018 – a união entre seu slogan como candidato ao Senado com o de Jair Bolsonaro para a Presidência. Atualmente, a canção abre o debate diário da Rádio 93 FM.
Rádio 93 FM foi indiciada por uso político de concessão
No final de 2017 o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) apresentou uma ação civilpública que pede que a outorga da Rádio Mundo Jovem (93 FM), do Grupo MK de Comunicação, seja anulada, já que estaria sendo utilizada para “autopromoção” de Arolde de Oliveira.
A peça explica que Arolde foi sócio da rádio enquanto deputado federal por 18 anos, entre 1º de junho de 1993 e 28 de abril de 2011, “em desconformidade com o disposto no art. 54 da Constituição da República”. O artigo 54 afirma que deputados e senadores não podem “firmar ou manter contrato” com “empresa concessionária de serviço público” – como é o caso de veículos de radiodifusão.
Em 2011, Arolde passou suas cotas para a filha, Marina de Oliveira. Porém, mesmo sem o nome entre os sócios, o MPF-RJ concluiu que o parlamentar continua sendo o “controlador e proprietário de fato” da rádio, que seria utilizada politicamente por Arolde. Sobre isso, o senador responde: “Aí tem que mostrar prova. Lenga-lenga, coisa de comunista isso aí”. Para ele, esse e outros processos que já enfrentou trata-se de “perseguições ideológicas, que não têm nenhum fundamento jurídico”.
Na ação, o procurador Sergio Gardenghi Suiama afirma que “as matérias publicadas a respeito do deputado no site da radiodifusora não deixam nenhuma dúvida a respeito do uso político do controle sobre a permissionária do serviço”. A investigação já foi encerrada e o processo aguarda sentença do juiz responsável, Adriano de Oliveira França, desde junho deste ano.
Para Arolde, “a Constituição diz que parlamentar pode ser proprietário de emissora de rádio, desde que ele não seja o gerente”. Porém, a Constituição não apresenta essa situação; é o Código Brasileiro de Telecomunicações que determina que “quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial” não pode exercer a função de “diretor ou gerente” de serviço de radiodifusão. A lei não escreve que parlamentares podem ser sócios ou proprietários de concessões de radiodifusão.
Além da ação civil contra a Rádio Mundo Jovem, existem outras que pedem o cancelamento das licenças de rádio e TV pertencentes a parlamentares. Em 2015, 13 entidades da sociedade civil e o Ministério Público Federal em São Paulo protocolaram uma representação que citava 40 políticos de 19 estados. O documento deu início a investigações em diversos estados brasileiros, como São Paulo, Alagoas, Pará e Amapá.
O então deputado Arolde de Oliveira foi alvo de campanha contra “coronéis da mídia”
O Coletivo Intervozes de Comunicação Social lançou a campanha “Fora Coronéis de Mídia”, que mirava a concentração de veículos de mídia nas mãos de políticos, o chamado “coronelismo eletrônico”. Cartazes com fotos dos “coronéis de mídia” foram espalhados por cidades brasileiras, Arolde entre eles.
Maior portal de notícias evangélicas do país, o Gospel Prime publicou, ainda em maio, texto onde afirmava haver um crescimento de “grupos pela legalização da pedofilia nas redes sociais”. Embora amparado em argumentos falsos e vagos como “muitos usuários das redes sociais relataram a criação de grupos para esse fim”, a publicação do site – listado pela CPMI das Fake News – circulou em grupos de WhatsApp cristãos e foi amplamente compartilhada por evangélicos nas redes sociais no começo de julho.
Reprodução/Facebook Fake news que associa pedofilia à esquerda circulou em grupos evangélicos
O mesmo argumento do Gospel Prime apareceu no Twitter do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), na terça-feira (14). Bolsonaro aproveitou a apresentação de um Projeto de Lei que aumenta a pena para pedófilos para afirmar, sem provas, que “a esquerda busca meios de descriminalizar a pedofilia, transformando-a em uma mera doença ou opção sexual”. O presidente mentiu, como mostraram várias checagens, incluindo esta do UOL e do Projeto Comprova, mas conseguiu atiçar ainda mais grupos religiosos radicais e discípulos do autodeclarado filósofo Olavo de Carvalho, que representam grande parte da sua base aliada.
Personalidades cristãs conservadoras também fizeram coro com Bolsonaro, como a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP), que é católica. Ela afirmou ser “muito comum esquerdistas relativizarem o sexo com menores de 14 anos”. O post de Janaína tinha quase seis mil curtidas e 900 compartilhamentos até a quinta-feira (16). O lutador de MMA evangélico Vitor Belfort, também postou no Twitter uma mensagem parabenizando Bolsonaro e Damares Alves pelo projeto e repetiu a fala de que a esquerda “busca meios de descriminalizar a pedofilia”.
Outros religiosos envolvidos na política, como o pastor e deputado estadual Léo Portela (PSL-MG), com mais de 20 mil seguidores no Twitter, também ajudaram a disseminar a fake news, assim como políticos bolsonaristas, a exemplo do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ), e seguidores de Olavo de Carvalho, como o youtuber Bernado Kuster, ambos investigados no inquérito do STF que apura a disseminação de fake news. O boato também foi repercutido por outros portais de direita e circulou por grupos bolsonaristas no WhatsApp.
Reprodução/WhatsApp Correntes que associam pedofilia à esquerda circulam em grupos bolsonaristas no WhatsappReprodução/WhatsApp Fake que associa pedofilia à esquerda repercutiu em portais e grupos de direita
Mentiras e moralismo
Bolsonaro usa fake news sobre pedofilia para ganhar apoio de lideranças religiosas conservadoras porque sabe que esse tema dialoga com o “moralismo cristão”, na visão do pastor progressista e crítico do atual governo, Ricardo Gondim. “As fake news fazem parte do arcabouço desse moralismo, que tem na ministra Damares, evangélica, um elemento muito representativo no governo federal”, considera.
Herbert Rodrigues, sociólogo e autor do livro “Pedofilia e suas narrativas”, diz que o tema da pedofilia foi capturado politicamente pela direita e pelas bancadas religiosas há alguns anos. “Desde a CPI da pedofilia no Senado(2008 -2010). Todos os membros da CPI eram homens. Muitos ligados à chamada bancada evangélica e tinham perfil conservador e punitivista. O presidente da CPI era o ex-senador Magno Malta, que é pastor evangélico”, lembra.
Entretanto, pelo menos a partir das eleições de 2018, Rodrigues observa que a extrema direita passou a associar a pedofilia com a esquerda mais sistematicamente. “Na minha opinião trata-se de uma estratégia fascista”, diz. Para a pesquisadora da USP Isabela Kalil, que estuda bolsonarismo e política antigênero desde 2013 este “é um tema recorrentemente usado como cortina de fumaça”. Ela acredita que não à toa o tuíte do presidente Bolsonaro foi publicado em um momento de crise do governo, na semana seguinte à soltura de Fabrício Queiroz, investigado por esquema de ‘rachadinhas’ quando era assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos).
Isabela observa ainda que a questão da pedofilia sempre consegue chamar atenção de lideranças cristãs e abastecer correntes de fake news. “Embora seja um assunto muito específico e grave, faz parte de um pacote de desinformação antigênero, que inclui outras fake news, como a ‘mamadeira erótica’ e o ‘kit gay’. Há, na visão de certos grupos, uma conspiração pela sexualização precoce das crianças, e isso é associado ao movimento LGBT e às feministas. Nessa perspectiva, a pedofilia seria a ponta de um iceberg nesses discursos enviesados”, considera.
Propagação de fake news acontece de forma estratégica
Em 2016, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e colunista do site Gospel Mais, gravou um vídeo falando sobre mudança de sexo em crianças e ideologia de gênero. Nele, Malafaia afirma que pedofilia é ideologia de gênero, e que “é um jogo dos esquerdopatas”. Com mais de 70 mil visualizações, o vídeo continua disponível no Youtube.
Reprodução/Youtube Pastor Silas Malafaia espalha boato que associa pedofilia à esquerda em vídeo de 2016
Dois anos depois, uma imagem que afirmava que Fernando Haddad, na época candidato à presidência da República pelo PT, era autor de um projeto pró-pedofilia, viralizou nas redes sociais. A montagem falsa fazia referência ao Projeto de Lei (PL) 236/10, que nem era de autoria de Haddad, nem tratava de legalização da pedofilia, como mostrou o Estadão.
Apesar disso, no começo deste ano, a ministra Damares fez referência ao mesmo PL em entrevista onde afirmou haver risco de legalização da pedofilia no Brasil.
O ex-deputado Federal Jean Willys (PSOL) também foi caluniosamente acusado de defender a pedofilia em 2018, pelo ainda deputado Federal Alexandre Frota (PSDB), condenado por disseminar fake news, na época aliado de Bolsonaro.
Recentemente, um tuíte falso, defendendo um pedófilo, também foi atribuído ao youtuber Felipe Neto, que tem feito críticas ao atual governo.
Acusar alguém de pedofilia ou de apoio à pedofilia é quase infalível enquanto tática para enfraquecer inimigos políticos e despertar apoio de grupos conservadores, avalia a pesquisadora Isabela Kalil. “Não tem como ser a favor da pedofilia. É um tema que perpassa a educação, mobiliza as famílias, é repercutido pela opinião pública. Desperta um pânico moral nas pessoas, mas por vezes carrega um pacote, como um Cavalo de Tróia que, quando aberto, está cheio de ideias antigênero, antiLGBT e de posições transfóbicas, também bandeiras de grupos católicos e evangélicos conservadores”.
Para Isabela, a falsa associação entre esquerda e pedofilia voltou à tona em um momento particularmente estratégico para o governo federal, que lançou em abril, no meio da pandemia, o Observatório da Família, dentro do ministério de Damares Alves. O Observatório teria a finalidade de “produzir conhecimento científico sobre a família e servir de referência para a criação de políticas públicas”. “O projeto foi lançado como se não fosse nada. Em um olhar mais atento se vê que é uma ameaça de grave retrocesso de direitos públicos, de desmonte do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – que envolve Comissão da Verdade, cotas raciais, políticas LGBTQI+. É bom lembrar que o PNDH tem sido um empecilho para o avanço de pautas conservadoras, muitas delas cristãs”, considera.
Embora a mentira pareça só uma afirmação descontextualizada, a desinformação obedece a um processo bem articulado e em cadeia: “Você cria um medo ou um problema e depois se apresenta a solução. No exemplo mais recente de Bolsonaro, para o medo da pedofilia, a solução é o PL e ainda outras ações do governo, como o Observatório da Família”, analisa Isabela Kalil.
Fake news importada
A pesquisadora também observa que as fake news circulam em movimentos encadeados. No caso do boato que associa a defesa da pedofilia à esquerda, a origem é estrangeira e é resgatada em momentos oportunos.
A reportagem do Gospel Prime cita um suposto movimento de legalização da pedofilia chamado MAP, sigla em inglês para pessoa sexualmente atraída por menores de idade. O texto afirma que “circulam rumores na internet de que uma das pautas dessa militância é inserir P (de pedófilo) à sigla LGBTI”. A notícia é falsa. O portal evangélico brasileiro traduz o texto do site latinoamericano “Notícias Cristianas”, que por sua vez importou uma notícia falsa dos Estados Unidos, verificada ainda em 2018 pela organização de fact-checking Snopes. Na verdade, MAP é um termo criado por uma organização norte-americana que auxilia pedófilos em busca de tratamento, diz a checagem.
Mas a associação de pedofilia com a esquerda é ainda mais antiga que isso. No Brasil, ela foi propagada pela figura de Olavo de Carvalho. Em um texto de 2002, intitulado “Cem anos de pedofilia”, o autoproclamado filósofo e atual guru de Bolsonaro elenca uma série de elementos que estariam por trás do que ele chama de “movimento de indução à pedofilia”. Entre eles estão as teorias de Sigmund Freud, o movimento feminista, e até o advento da pílula anticoncepcional e da camisinha. Para Carvalho, que é bastante religioso, “por toda parte onde a prática da pedofilia recuou, foi a influência do cristianismo — e praticamente ela só — que libertou as crianças desse jugo temível”.
Depois do texto, o guru continuou propagando essa falsa teoria para seus seguidores e a resgatando em momentos oportunos. Uma das aulas de seu curso online de filosofia (COF) de título “Poder e Pedofilia – um breve resumo” foi relembrada por seu aluno e youtuber, Bernardo Küster na ocasião da polêmica a respeito da mostra “Queer Museu” no MASP. Em vídeo, olavista argumenta que a exposição faz parte do grande projeto da esquerda de legalizar a pedofilia, como já dizia seu guru.
Reprodução/ Facebook Youtuber olavista Bernardo Küster, repercutiu boato ainda em 2017
Sistematicamente portais de desinformação liderados por seguidores de Olavo de Carvalho também ressuscitaram essa teoria. No último dia 15, o site Estudos Nacionais, do aluno de Olavo Cristian Derosa, publicou um texto que buscava legitimar a afirmação de Bolsonaro. “Esquerda quer descriminalizar a pedofilia? Entenda a declaração de Bolsonaro e sua repercussão” dizia.
*Publicado originalmente pela Agência Pública. 09 de Julho de 2020
“E essas pessoas cheias de saúde que se aposentam com 50 anos?”, pergunta o ator de um vídeo encomendado pelo governo Bolsonaro sobre a reforma da Previdência. A série publicitária, parte da campanha oficial mais cara realizada na atual gestão da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), foi veiculada em rádios, TVs, jornais impressos e na internet, onde encontrou um nicho peculiar: canais de YouTube para crianças.
Segundo levantamento da Agência Pública, canais infantis no YouTube foram um dos principais meios de veiculação da propaganda governamental sobre a reforma da Previdência, que circulou também em canais religiosos, perfis acusados de produzir notícias falsas e contas banidas da plataforma por violarem regras.
A reportagem apurou os 500 canais do YouTube que mais receberam verbas da Secom através do sistema de anúncios do Google entre 6 de junho e 13 de julho de 2019. Nesse período, anúncios da Previdência foram veiculados em 168 canais infantis, 76 canais de música, 52 videoblogs ou vlogs e 33 canais religiosos. A Pública constatou que a campanha foi impulsionada em pelo menos 11 canais que publicaram notícias falsas e sete que foram excluídos ou banidos do YouTube por violação das regras. Juntos, eles receberam R$ 119 mil de dinheiro público.
Por meio dessa campanha, a Secom atingiu 9,8 milhões de visualizações em pouco mais de um mês. Mais de meio milhão se converteu em cliques nos anúncios da Nova Previdência – uma taxa de interação de 5,8%. Os canais infantis, maior público-alvo da campanha do governo federal, lideraram as visualizações.
Os dados foram obtidos por consultores legislativos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), em um processo que durou quase seis meses. Relatório apresentado à CPMI das Fake News revela que grande parte dos anúncios foi destinada a portais considerados “inadequados” – como sites de jogos de azar, disseminadores de notícias falsas ou banidos do YouTube por descumprimento de regras – e que há indícios de o dinheiro foi mal investido.
Canais bolsonaristas que disseminam fake news foram beneficiados
O Google Ads (AdWords) foi a plataforma utilizada pela Secom para divulgar a campanha da Nova Previdência no YouTube, em aplicativos e sites. Nela, os gestores de uma campanha podem estabelecer o orçamento, além de uma série de parâmetros para delimitar os canais em que os anúncios serão exibidos. O Google faz a intermediação entre o anunciante e os donos dos canais no YouTube que ofereceram seus espaços publicitários.
Ainda que o sistema seja automático, o anunciante consegue ter controle dos canais e até dos vídeos em que seu conteúdo será exibido, de acordo com o publicitário Paulo Motta, que trabalha com Google Ads há sete anos. “O Google permite segmentação por temas dos canais e por público-alvo. É possível escolher a faixa etária, a localização, o perfil de renda baseado em hábitos de consumo, a idade, e uma série de opções porque o Google colhe informações dos usuários para oferecer aos anunciantes”, garante. Motta diz que os gestores de uma campanha podem bloquear segmentos, canais e vídeos para assegurar que os anúncios não serão exibidos em sites de fake news e/ou de conteúdos sensíveis, como eróticos, por exemplo.
Apesar dessa possibilidade de bloqueio, anúncios da Secom foram veiculados em canais que espalharam fake news. Entre 6 de junho e 13 de julho de 2019, foram mais de 175 mil acessos aos vídeos da Nova Previdência em 11 canais desse tipo – com um faturamento de R$ 1,9 mil.
Oito deles são bolsonaristas, como, por exemplo, Bolsonaro TV, Jacaré de Tanga e Seu Mizuka, que postam vídeos alinhados ao discurso do presidente.
“A verdade pode ser assustadora!” é o título de um dos vídeos do Seu Mizuka, postado em 27 de junho do ano passado. Nele, o youtuber fala da reunião do G20, que estava prestes a ocorrer, chama os líderes mundiais de “globalistas” e acusa as Nações Unidas de querer criar movimentos separatistas dentro do Brasil.
Vídeos como esse foram precedidos por propagandas da Previdência, que atingiram mais de 18 mil visualizações através do Seu Mizuka. A cada cem visualizações, 41 pessoas clicaram no vídeo, uma taxa de interação considerada alta.
De maneira geral, considerando a taxa de interação – que pode ser um clique, um like ou um comentário – , as pessoas que assistiram aos canais de fake news se mostraram mais interessadas nos anúncios da Previdência do que as que viram vídeos de música, por exemplo. Em média, a cada cem acessos aos vídeos de desinformação, 13 se converteram em interações com os anúncios.
Um dos canais mais influentes na campanha da Nova Previdência foi o Foco do Brasil – antes chamado de “Folha do Brasil” –, que atingiu 57 mil visualizações e teve um ganho de R$ 13,70 por clique nos anúncios – totalizando um faturamento de R$ 726,25 no período. Além de publicar notícias falsas, o canal é alvo do inquérito da Procuradoria-Geral da República (PGR) que investiga a organização de atos antidemocráticos.
Com 2,18 milhões de inscritos, o canal posta vídeos de Jair Bolsonaro e de um jornal denominado JB News, que comenta as principais notícias do dia sob a ótica bolsonarista.
No seu último vídeo, denominado “Fim do Canal?”, publicado na quarta-feira (24/6), o apresentador agradece o apoio dos seguidores e ressalta de onde vem o dinheiro do canal: “Contamos com o apoio de membros e com as publicidades que o próprio YouTube veicula e que você assiste, exatamente igual ao que acontece com todo o universo de youtubers”.
Outro beneficiado com a campanha – que veiculou as propagandas 6,4 mil vezes –, o Vlog do Fernando Lisboa Replay é do mesmo autor do canal Vlog do Lisboa, que também está na mira das investigações da PGR. Em seus dois canais, Lisboa exibe fotos com o presidente Jair Bolsonaro.
O ministro Alexandre de Moraes autorizou que a PGR requisitasse ao YouTube as contas da ferramenta de anúncios do Google associadas ao Foco do Brasil e ao Vlog do Lisboa, no âmbito do inquérito dos atos antidemocráticos. Outros 11 canais também estão na mira.
O advogado de Fernando Lisboa, Marcos Conceição, afirmou que seu cliente respeita as instituições democráticas. “Não tem nada dele falando das instituições. Ele formula opinião em cima de matérias publicadas pelo Uol, pelo Terra, pelo Globo”, observou. Sobre os recursos recebidos com anúncios do Google para a campanha da Previdência, Conceição disse que Lisboa recebe o dinheiro dos anúncios diretamente do YouTube. “Aí ele não sabe de onde veio”, ressaltou, acrescentando que Lisboa não tem nenhum vínculo com a Secom e nunca recebeu dinheiro da secretaria. A Pública entrou em contato por e-mail com os canais DR News e Foco do Brasil, mas não obteve resposta.
Segundo o movimento Sleeping Giants, os anúncios do Google AdWords tornaram a produção de fake news “um negócio extremamente lucrativo”. O movimento tenta combater o financiamento de sites de desinformação e discurso de ódio informando as empresas de que seus anúncios estão sendo exibidos nessas plataformas e pedindo bloqueio.
O Sleeping Giants já flagrou anúncios do Tribunal de Contas do Mato Grosso do Sul (TCE-MS) e do Banco do Brasil em sites de fake news, que foram bloqueados por ordem do Tribunal de Contas da União (TCU). “O dinheiro público está basicamente financiando ataques à democracia”, defende o Sleeping Giants.
Anúncios da Previdência foram veiculados em canais investigados
Além de canais de fake news, outros dois canais, entre os 500 que veicularam anúncios da Nova Previdência, são alvos de investigações na Justiça.
O canal de Renato Garcia trouxe 137 mil acessos à propaganda governamental sobre a reforma da Previdência e, com isso, recebeu R$ 1,6 mil de dinheiro público. O youtuber paranaense, que faz vídeos sobre sua rotina e suas “máquinas” (motocicletas, carros e até armas), foi preso por posse ilegal de armas, munição e drogas encontradas em sua casa em maio de 2019 – um mês antes de receber financiamento da Secom através dos anúncios. Ele pagou fiança e responde em liberdade, mas continuou produzindo três vídeos por dia para seus mais de 18 milhões de inscritos.
Ainda em 2019, Garcia publicou um vídeo em suas redes sociais para esclarecer que as drogas e armas apreendidas não pertenciam a ele. A reportagem tentou entrar em contato com o canal para esclarecimentos sobre o caso e sobre a veiculação de anúncios da Previdência, mas não teve sucesso.
Outro exemplo de canal investigado pela Justiça que recebeu dinheiro público é o Fran para Meninas, que recebeu R$ 1.084,34 por 91 mil acessos ao anúncio da Nova Previdência. O canal está sendo investigado pelo Ministério Público (MP) pelo que o Conselho Tutelar chamou de “exposição vexatória e degradante”, como revelou a revista Veja em maio deste ano.
A denúncia começou na internet, quando usuários do Twitter subiram a hashtag #SalvemBelParaMeninas, com evidências de que a menina protagonista dos vídeos, Bel, estaria sendo exposta a situações desconfortáveis por sua mãe, Francinete Peres, no processo de gravação.
Em 2016, o canal Bel para Meninas também foi alvo de investigação do MP para apurar “práticas de direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica ao público infantojuvenil”. Como resultado, o MP recomendou que o Google retirasse do YouTube todos os vídeos com publicidade de produtos infantis e protagonizados por crianças de até 12 anos.
Depois das denúncias mais recentes, os pais da criança gravaram um vídeo em que negaram a veracidade das acusações, que chamaram de “fake news” e “campanha caluniosa e difamatória”. A Pública buscou contato com os proprietários do canal, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
Pedro Hartung, coordenador do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, enfatiza a necessidade de responsabilização das empresas, plataformas e anunciantes em casos como o de Bel, que chama de trabalho artístico não autorizado. “É importante que qualquer anunciante, seja privado ou governamental, assuma a responsabilidade que tem por lei de não financiar atividades que estejam fora da legalidade, como o trabalho infantil artístico sem autorização judicial.”
Anúncios da Previdência para crianças
A maior parte dos canais que receberam os anúncios entre 6 de junho e 13 de julho de 2019 foi direcionada ao público infantil – 168 dos 500 analisados –, recebendo um total de R$ 57,1 mil de repasse, um terço do montante analisado.
Esses canais foram os que mais divulgaram as propagandas da Previdência: os vídeos da campanha se repetiram 4,5 milhões de vezes. Destas, 240 mil se converteram em cliques nos anúncios. O número corresponde a 41% de todas as interações no período.
Para Hartung, a informação de que essa campanha foi veiculada principalmente em canais infantis do YouTube causa “estranhamento”. Ele avalia que o alto número de interações em canais infantis é consequência da vulnerabilidade desse público, não uma medida da qualidade do anúncio.
“A criança ainda está entendendo como funciona o mundo digital e o próprio mundo real, em desenvolvimento inconcluso de suas capacidades de leitura crítica.”
O publicitário Paulo Motta, que diz excluir essa categoria quando veicula anúncios no Google, acredita que a Secom pode ter direcionado a campanha para esses canais em decorrência da “enorme audiência do público infantil no YouTube”. Outra explicação seria o fato de que as crianças costumam usar o celular ou dispositivo de um adulto para acessar os vídeos. “O Google entende o comportamento de consumo como sendo o do proprietário do aparelho, não o da criança. Por isso, mesmo se o usuário está vendo um desenho, o YouTube pode mostrar um anúncio da Previdência”, diz.
Os consultores legislativos da CPMI das Fake News consideram que a grande veiculação de anúncios da Previdência em canais infantis é evidência de uma “falha intensa de target”, ou seja, determinação de público-alvo.
Outra evidência dessa falha seria a presença de canais estrangeiros entre os endereços que mais receberam repasses da Secom no período analisado. Dos 168 canais infantis, 32 exibiam seu conteúdo em línguas como inglês, espanhol, coreano, árabe, russo, japonês, turco, alemão e francês. Juntos, eles receberam R$ 7,9 mil do governo. O relatório exibido à CPMI dá destaque ao canal russo Get Movies, que sozinho recebeu R$ 1,4 mil.
Quase R$ 4 mil foram destinados a canais religiosos
Canais religiosos estão em quinto lugar entre as categorias que mais veicularam anúncios da Nova Previdência no período de 6 de junho a 13 de julho. Eles trouxeram mais de 285 mil acessos para a campanha em prol da reforma da Previdência.
Dos 500 canais que mais receberam repasses, 33 eram ligados à temática religiosa (6,6%). Juntos, eles receberam R$ 3.976,50.
Só o canal do cantor gospel Leandro Borges apresentou as propagandas do governo mais de 32 mil vezes. Considerado um fenômeno da música no meio evangélico, Leandro tem mais de 2,5 milhões de inscritos na plataforma e recebeu R$ 489,20 de dinheiro público pela campanha.
De cima para baixo: cantor Leandro Borges, no centro, senador Arolde de Oliveira e abaixo, Casal Hernades (Fotos/Reprodução)
Em 2018, o cantor gravou um vídeo em que declara apoio ao senador bolsonarista Arolde de Oliveira (PSD). Arolde é dono do MK, um dos maiores grupos empresariais evangélicos do país, que inclui uma gravadora (MK Music), a MK News e outras empresas de mídia. Leandro não tem contrato com a MK Music, mas a MK News gerencia o YouTube do senador Flávio Bolsonaro, que também veiculou anúncios da Secom no período, mas poucas vezes (48). O canal é apontado entre os gastos irregulares da secretaria no relatório da CPMI das Fake News.
Entre os 500 canais mais influentes na campanha da Nova Previdência no YouTube está o da Renascer Praise. A banda gospel, ligada à igreja evangélica Renascer em Cristo, gerou mais de 5 mil visualizações para o governo por um valor de R$ 82,55. Comandada pelo apóstolo Estevam Hernandes e pela bispa Sônia Hernandes, a Renascer mantém a Rede Gospel, uma emissora de TV que recebeu R$ 402,7 mil em anúncios da Secom durante o governo Bolsonaro. A igreja acumula uma dívida de mais de R$ 30 milhões com a Receita Federal.
Pelo WhatsApp, um integrante da equipe de divulgação do cantor Leandro Borges informou que a publicidade do canal dele no YouTube “é administrada por uma empresa da Suíça chamada BELIEVE” e que “ele não tem relações com anunciantes, uma vez que esse gerenciamento é feito pela empresa”. A reportagem da Pública não conseguiu contato com a igreja Renascer em Cristo.
Agência gastou quase R$ 6 milhões em divulgação da Previdência no Google
A campanha da reforma da Previdência, que custou mais de R$ 71 milhões em diversas ações, envolveu sete agências de publicidade contratadas pelo governo. Os gastos, contudo, ficaram concentrados em uma agência, a Artplan – empresa que se tornou a maior beneficiada por contratos com a Secom na gestão atual.
Segundo a Pública apurou, o governo fechou mais de R$ 69 milhões em contratos com a Artplan para a campanha da Previdência. A agência foi a única que registrou gastos no sistema de anúncios do Google a respeito da Previdência, além de gastos no Facebook e em outras redes sociais.
Além da propaganda sobre as mudanças na Previdência, a Artplan fechou contratos para ações nas redes sociais nas campanhas de combate à violência contra a mulher e “Pátria Voluntária”, ambas ligadas ao Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos; e de divulgação das medidas anticrime, do Ministério da Justiça.
A proximidade da Artplan com o secretário Fabio Wajngarten já foi motivo de críticas ao governo. A Folha de S.Paulorevelou que a agência presta serviços para uma empresa da qual Wajngarten é sócio, a FW Comunicação, que tem como clientes emissoras de TV como Record e Band. Segundo a reportagem, a empresa de Wajngarten atua junto à Artplan averiguando se anúncios comprados pela agência foram efetivamente veiculados.
A Artplan já foi denunciada pelo MP por envolvimento em esquema de desvio de dinheiro, além de ter levantado suspeitas de favorecimento em licitações. A Pública questionou a agência sobre os valores gastos no sistema de anúncio do Google. A Artplan respondeu que “fez a intermediação da compra entre Secom e Google, referente ao pacote ‘Formas Inovadoras de Comunicação’”, comercializado pela plataforma, mas que “o suporte e distribuição da campanha foram executados pelo próprio Google, respaldados pelas políticas da sua plataforma”.
Além da Artplan, a Secom fechou contratos para anúncios em redes sociais com a Calia Y2, agência que, antes da gestão de Wajngarten, era a que mais recebia verbas públicas da secretaria. A Calia Y2 fechou contratos para ações em redes sociais em duas campanhas que passam imagem “positiva” do governo Bolsonaro, como revelou a Pública em reportagem, e atuou na divulgação no Google para as campanhas “Dia da Amazônia”, para “mostrar como o Brasil defende e conserva o bioma”; e “Brasil no Exterior”, para melhorar a imagem do governo Bolsonaro no exterior. Foi a empresa responsável pela “Proteger Vidas e Empregos”, em substituição à campanha “O Brasil não Pode Parar”, vetada pela Justiça. Custou R$ 5,3 milhões aos cofres públicos, por intermédio da Secom.
A reportagem questionou a Secom sobre a segmentação utilizada nos anúncios da Previdência e sobre outras campanhas veiculadas no Google, mas não obteve resposta até a data de publicação.
Reportagem produzida por Andrea DiP, Alice Maciel, Mariama Correia, Rute Pina, Gilberto Nascimento
No vídeo divulgado por Bolsonaro em suas redes sociais e amplamente compartilhado em grupos de evangélicos no WhatsApp na última semana, um narrador com a voz empostada dizia que “os maiores líderes religiosos do país atenderam à proclamação santa feita pelo chefe supremo da nação, o presidente Jair Messias Bolsonaro”, e convocavam “o exército de Cristo para a maior campanha de jejum e oração já vista na história do Brasil”.
Em seguida, o missionário R. R. Soares, o pastor André Valadão, René Soares, o deputado pastor e presidente da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) Silas Câmara (Republicanos-AM), o bispo Abner Ferreira e mais pastores da Quadrangular do Reino de Deus, Assembleia de Deus Madureira, Paz e Vida, Getsêmani, Brasil para Cristo, o deputado Marco Feliciano (Pode-SP), o bispo da Igreja Universal Edir Macedo, o bispo da Sara Nossa Terra Robson Rodovalho, o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus Valdemiro Santiago, o apóstolo Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo, Silas Malafaia e ainda representantes da Assembleia de Deus Brás, da Presbiteriana do Brasil, de igrejas batistas, entre outras denominações evangélicas, convocavam para o “Jejum Nacional” que aconteceu no último domingo, 5 de abril.
O jejum é uma prática comum a algumas religiões, entre elas a cristã, em que fiéis ficam sem comer e beber durante algumas horas ou dias como voto de sacrifício para alcançar um objetivo ou “vencer uma batalha”. O narrador finalizava dizendo que a “Igreja de Cristo na terra iria clamar e o inferno iria explodir” e pedia que o vídeo fosse compartilhado e a igreja, mobilizada.
No domingo, pequenos grupos de evangélicos foram então para a frente do Palácio da Alvorada em Brasília jejuar e orar pelo presidente e pelo fim do coronavírus, enquanto lá dentro Bolsonaro se reunia com aliados políticos e assessores.
Mais do que o espetáculo – ou a inconstitucional mistura entre Igreja e Estado laico –, a campanha de jejum e oração vem para marcar posição em um momento em que o presidente tem sua imagem fragilizada pela forma como tem agido frente à pandemia mundial e mostrar que ainda pode contar com o apoio da sua mais forte base eleitoral, da qual fazem parte os principais e mais poderosos líderes de megaigrejas evangélicas do país – que se uniram, em consonância inédita na história, para apoiar sua eleição e agora seu mandato. Justamente para manter essa base, Bolsonaro tem cedido ao lobby evangélico por meio de declarações e gestos efusivos e, mais recentemente, no dia 26 de março, do polêmico decreto que inclui as igrejas na lista de serviços essenciais, decisão que se tornou uma das principais batalhas judiciais de seu governo atualmente.
A disputa pela manutenção dos templos abertos começou logo nos primeiros dias da quarentena, como mostrou matéria da Agência Pública. Líderes religiosos como Edir Macedo e Silas Malafaia diziam que resistiriam com as portas abertas e que a fé seria suficiente para curar “a praga”. O líder máximo da Universal também publicou uma desastrada mensagem nas redes sociais em que afirmou que o coronavírus era uma “tática de satanás” e não passava de uma simples gripe, não devendo causar preocupação aos fiéis. Com o passar dos dias e as determinações de muitos estados para o fechamento das igrejas, a maioria dos bispos e pastores foi mudando o tom.
Em áudios atribuídos a Macedo, divulgados em redes sociais de religiosos como o ex-bispo Alfredo Paulo, o fundador da Universal, em tom melancólico e se dizendo triste, pede que os seguidores não lhe enviem mais mensagens alegres e de estímulo enquanto “o povo está sofrendo com essa pandemia desgraçada”. Em outro áudio também atribuído ao bispo, ele revelava estar na Flórida, nos Estados Unidos, em quarentena imposta pelo governo local, ao lado da mulher, Ester, que tem 70 anos – ele, 75. “A gente tem consciência de que somos mais vulneráveis a essa doença, a essa peste, por conta da idade”, declarou. “Eu gostaria de fazer reunião. Mas não posso.”
Mesmo Silas Malafaia, que continua atacando as medidas de isolamento social em suas redes sociais, tem obedecido às determinações dos estados onde tem igrejas e realizado seus cultos online, a portas fechadas.
As contas das igrejas, no entanto, não param de chegar, como têm enfatizado bispos e pastores nas redes sociais, em lives e em cultos gravados. “Continuamos pagando milhares de aluguéis, de parcelas de imóveis adquiridos, de funcionários”, lamentou Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, em um culto.
Bancada Evangélica atuou junto a Bolsonaro
ESPECIAL: CORONAVÍRUS
Mais do que o espetáculo a campanha de jejum e oração vem para marcar posição
Edir Macedo afirmou que vírus era “tática de satanás” e depois recuou; outro bispo da Universal morreu sob suspeita de coronavírus
Igrejas estão preocupadas com redução de dízimos, engajamento e conversões, afirma pesquisadora
No vídeo divulgado por Bolsonaro em suas redes sociais e amplamente compartilhado em grupos de evangélicos no WhatsApp na última semana, um narrador com a voz empostada dizia que “os maiores líderes religiosos do país atenderam à proclamação santa feita pelo chefe supremo da nação, o presidente Jair Messias Bolsonaro”, e convocavam “o exército de Cristo para a maior campanha de jejum e oração já vista na história do Brasil”.
Em seguida, o missionário R. R. Soares, o pastor André Valadão, René Soares, o deputado pastor e presidente da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) Silas Câmara (Republicanos-AM), o bispo Abner Ferreira e mais pastores da Quadrangular do Reino de Deus, Assembleia de Deus Madureira, Paz e Vida, Getsêmani, Brasil para Cristo, o deputado Marco Feliciano (Pode-SP), o bispo da Igreja Universal Edir Macedo, o bispo da Sara Nossa Terra Robson Rodovalho, o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus Valdemiro Santiago, o apóstolo Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo, Silas Malafaia e ainda representantes da Assembleia de Deus Brás, da Presbiteriana do Brasil, de igrejas batistas, entre outras denominações evangélicas, convocavam para o “Jejum Nacional” que aconteceu neste domingo, 5 de abril.
O jejum é uma prática comum a algumas religiões, entre elas a cristã, em que fiéis ficam sem comer e beber durante algumas horas ou dias como voto de sacrifício para alcançar um objetivo ou “vencer uma batalha”. O narrador finalizava dizendo que a “Igreja de Cristo na terra iria clamar e o inferno iria explodir” e pedia que o vídeo fosse compartilhado e a igreja, mobilizada.
No domingo, pequenos grupos de evangélicos foram então para a frente do Palácio da Alvorada em Brasília jejuar e orar pelo presidente e pelo fim do coronavírus, enquanto lá dentro Bolsonaro se reunia com aliados políticos e assessores.
Mais do que o espetáculo – ou a inconstitucional mistura entre Igreja e Estado laico –, a campanha de jejum e oração vem para marcar posição em um momento em que o presidente tem sua imagem fragilizada pela forma como tem agido frente à pandemia mundial e mostrar que ainda pode contar com o apoio da sua mais forte base eleitoral, da qual fazem parte os principais e mais poderosos líderes de megaigrejas evangélicas do país – que se uniram, em consonância inédita na história, para apoiar sua eleição e agora seu mandato. Justamente para manter essa base, Bolsonaro tem cedido ao lobby evangélico por meio de declarações e gestos efusivos e, mais recentemente, no dia 26 de março, do polêmico decreto que inclui as igrejas na lista de serviços essenciais, decisão que se tornou uma das principais batalhas judiciais de seu governo atualmente.
A disputa pela manutenção dos templos abertos começou logo nos primeiros dias da quarentena, como mostrou matéria da Agência Pública. Líderes religiosos como Edir Macedo e Silas Malafaia diziam que resistiriam com as portas abertas e que a fé seria suficiente para curar “a praga”. O líder máximo da Universal também publicou uma desastrada mensagem nas redes sociais em que afirmou que o coronavírus era uma “tática de satanás” e não passava de uma simples gripe, não devendo causar preocupação aos fiéis. Com o passar dos dias e as determinações de muitos estados para o fechamento das igrejas, a maioria dos bispos e pastores foi mudando o tom.
Em áudios atribuídos a Macedo, divulgados em redes sociais de religiosos como o ex-bispo Alfredo Paulo, o fundador da Universal, em tom melancólico e se dizendo triste, pede que os seguidores não lhe enviem mais mensagens alegres e de estímulo enquanto “o povo está sofrendo com essa pandemia desgraçada”. Em outro áudio também atribuído ao bispo, ele revelava estar na Flórida, nos Estados Unidos, em quarentena imposta pelo governo local, ao lado da mulher, Ester, que tem 70 anos – ele, 75. “A gente tem consciência de que somos mais vulneráveis a essa doença, a essa peste, por conta da idade”, declarou. “Eu gostaria de fazer reunião. Mas não posso.”
Mesmo Silas Malafaia, que continua atacando as medidas de isolamento social em suas redes sociais, tem obedecido às determinações dos estados onde tem igrejas e realizado seus cultos online, a portas fechadas.
As contas das igrejas, no entanto, não param de chegar, como têm enfatizado bispos e pastores nas redes sociais, em lives e em cultos gravados. “Continuamos pagando milhares de aluguéis, de parcelas de imóveis adquiridos, de funcionários”, lamentou Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, em um culto.
Bancada Evangélica atuou junto a Bolsonaro
Incomodada com as medidas de governos estaduais e municipais que vinham impedindo igrejas de realizar atividades com aglomerações de público, como em São Paulo, por exemplo, ou até mesmo determinando o fechamento dos templos religiosos, como em Porto Alegre, no dia 18 de março a bancada evangélica, representada pela FPE, emitiu uma nota pedindo a reabertura dos templos religiosos para enfrentar o que chamou de “pandemia maligna”. Dois dias depois, em rede nacional, o presidente Jair Bolsonaro assumiu o discurso e criticou pela primeira vez em público o fechamento das igrejas, apontado por ele como uma medida absurda.
“O que eu vejo no Brasil, não são todos (governadores), mas muita gente, para dar satisfação para seu eleitorado, toma providências absurdas, fechando shoppings. Tem gente que quer fechar igreja, o último refúgio das pessoas”, afirmou o presidente durante entrevista ao Programa do Ratinho, no SBT. O discurso de Bolsonaro acalmou os ânimos das lideranças evangélicas. Segundo o deputado e pastor Marco Feliciano (Pode-SP) em entrevista à Agência Pública, entre os parlamentares da bancada “o assunto foi pacificado na fala do presidente, quando ele disse que igrejas não podem fechar”.
Após o decreto do dia 26 de março, a FPE comemorou nas redes sociais, dizendo que a medida era resultado da articulação do grupo: “Após ação da FPE solicitando alteração no decreto qualquer pessoa pode buscar essas instituições para aconselhamento e conforto espiritual, desde que sejam atendidas e obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”, diz o texto publicado.
A “ação da FPE” citada na mensagem se refere a uma emenda de autoria do presidente da Frente, deputado federal Silas Câmara (Republicanos/AM), que prevê exatamente “assistência religiosa e socorro espiritual” na lista de atividades essenciais. A emenda, datada de 25 de março, foi apresentada à medida provisória que dá a Bolsonaro o poder de definir o que é considerado atividade essencial. Um dia depois, o presidente publicou o decreto que atualiza uma primeira lista de serviços essenciais dispensados da quarentena, publicada inicialmente em 20 de março, permitindo que os templos religiosos fiquem abertos durante a emergência do coronavírus.
Marco Feliciano, hoje o principal interlocutor entre a bancada evangélica e o presidente, confirmou à Agência Pública que levou pessoalmente a reivindicação do grupo a Bolsonaro. “O presidente Bolsonaro escuta o conjunto da sociedade e o Parlamento. Como vice-líder do governo e amigo do presidente, eu sou um desses interlocutores”, disse.
Por sua vez, Silas Câmara argumentou em entrevista à Agência Pública que a frente parlamentar evangélica “não está fazendo nenhuma pressão para qualquer coisa que fira o princípio técnico e do bom comportamento de enfrentamento à pandemia”. Para ele, “nós defendemos a abertura dos templos como um local de refúgio de pessoas que estão preocupadas, às vezes desesperadas, precisando de um conselho. Um local para oração e obviamente dentro daquilo que preconiza a boa técnica de defesa e prevenção ao coronavírus, manter 1 metro de distância, máscara de proteção onde é o caso”.
A Agência Pública mostrou, porém, nessa reportagem que, sem os cultos em horários regulares, algumas megaigrejas continuam abertas em esquema de plantão de atendimento, colocando em risco até mesmo a vida de pastores e obreiros.
No Senado, a FPE também está se articulando. O grupo conseguiu derrubar, na quinta-feira (dia 2 de abril), um artigo do Projeto de Lei 1.179/2020, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), que previa restrição à realização de reuniões e assembleias até o dia 30 de outubro, de acordo com nota publicada nas redes sociais. Segundo informou a FPE, a medida seria “um desastre para as igrejas de todo o Brasil, não fosse a intervenção providencial da Frente Parlamentar Evangélica”. O substitutivo do projeto foi aprovado dia 3, sem atingir as igrejas, que continuam podendo reunir seus fiéis.
Em um vídeo compartilhado nas redes sociais que viralizou nos grupos de WhatsApp de fiéis, Marco Feliciano conta que esteve novamente com o presidente na quarta-feira, 1o de abril, e levou “um pedido de centenas de pastores que gostariam que ele, como chefe da nação, pedisse ao povo para orar e jejuar”. “Ele, como cristão e temente a Deus, sabe a força do jejum e da oração, foi extremamente tocado. Pessoal, nunca antes vimos um presidente agir assim”, destacou Feliciano, tomando pra si o crédito político do Jejum Nacional. Ao final do vídeo, aparece uma gravação de Bolsonaro obedecendo à vontade de seus fiéis aliados: “E aqueles que têm fé e acreditam, domingo é o dia de jejum”.
Malafaia, a ponta de lança do Messias junto aos fiéis
Fora do Congresso (apesar de transitar bastante por lá), o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, tem sido o principal crítico do isolamento social. No dia 18 de março, ele desafiava pelo Twitter: “Querem fechar as igrejas que sou pastor? Recorram à Justiça”. A publicação tinha críticas diretas aos protocolos estabelecidos pelos governos de Santa Catarina e Pernambuco. A manutenção dos cultos presenciais, contudo, também contraria orientações do Ministério da Saúde contra aglomerações.
Malafaia tentou barrar o esvaziamento dos seus templos, mas a Justiça do Rio de Janeiro terminou proibindo os cultos por lá. As 116 igrejas que ele comanda no país suspenderam então as cerimônias presenciais no dia 20 de março, mas continuam abertas para atendimentos individuais dos fiéis. Vale lembrar que eventos com presença de público estavam proibidos por decreto do governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), desde o dia 13 de março. Hoje, Witzel é um dos maiores desafetos de Bolsonaro.
Silas Malafaia é um importante aliado de Jair Bolsonaro na interlocução com o eleitorado evangélico. O pastor pentecostal tem postado comentários sobre o coronavírus em uma série de vídeos na internet. Neles, defende a postura do presidente, que chegou a chamar a pandemia de “histeria” e “gripezinha”, e ataca governadores e prefeitos. “O que é pior? Coronavírus ou caos social? Caos social”, questionou em vídeo. Na última quinta-feira (dia 2), depois de ter recebido denúncias dos usuários, o Twitter apagou as postagens do pastor sobre o coronavírus, por entender que elas representam risco para as pessoas em meio à pandemia.
O aluguel da legenda de Edir Macedo aos Bolsonaro
O lobby da Universal do Reino de Deus no governo foi favorecido pelas tratativas em andamento a fim de que o Republicanos, o partido ligado à igreja de Edir Macedo, acolhesse dois filhos do presidente da República: Carlos, vereador do Rio, e Flávio, senador, além de Rogéria, ex-mulher de Bolsonaro. Carlos e Flávio deixaram o PSL e se filiaram ao Republicanos no final de março. Foram recebidos pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, também bispo licenciado da Universal e sobrinho de Edir Macedo, que comemorou no Twitter: “Chegam no nosso partido para somar”.
O vereador Carlos Bolsonaro aportou no Republicanos já “mandando e desmandando”, segundo relatos de políticos à reportagem, e definindo os nomes de quem deverá disputar cargos-chave no Rio de Janeiro nas próximas eleições. Em fevereiro, o Republicanos já havia anunciado que ofereceria legenda para os candidatos da Aliança pelo Brasil, o partido de Jair Bolsonaro, que não conseguiu ser oficializado a tempo para a disputa eleitoral em outubro. De um total de 490 mil assinaturas necessárias para sua criação, a Aliança conseguiu apenas 3 mil assinaturas validadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A chegada de Carlos e Flávio ao Republicanos teve reflexos na mudança de postura de Marcelo Crivella no combate à pandemia do coronavírus. O prefeito estava afinado às orientações do governador Wilson Witzel, adversário político de Jair Bolsonaro, anunciando o fechamento do comércio e dos bancos na última semana de março. Mas, três dias depois, Crivella flexibilizou as medidas e afirmou que o comércio seria reaberto aos poucos. Temendo riscos à sua imagem, no entanto, não embarcou totalmente na onda da família Bolsonaro. Continuou a dizer que as pessoas que pudessem permanecessem em suas casas.
Na noite de segunda-feira, 30 de março, não havia culto no Templo de Salomão, a suntuosa sede da Universal no bairro do Brás, na região central de São Paulo. O recado era passado aos fiéis que telefonavam em busca de informações sobre o atendimento. A reportagem foi até o gigantesco centro religioso de Edir Macedo e constatou que permanecia aberto – com autorização e respaldo legal –, e os fiéis podiam entrar e orar. Seguranças e funcionários eram maioria na monumental obra, com 98 mil metros quadrados de área construída.
Ex-integrantes da Universal divulgaram em redes sociais que obreiros da igreja – uma espécie de auxiliar do pastor – têm sido convocados para ajudar no trabalho de limpeza dos templos. Eles recebem orientações também para não deixar de comparecer ao altar, orar e fazer suas doações à igreja.
O recuo de Macedo e a suspeita de morte de bispo por Coronavírus
O recuo da Universal também pode ter a ver com a crescente preocupação nas igrejas com a possível contaminação de pastores e fiéis pelo vírus.
O ex-pastor Davi Vieira revelou, em um canal no Telegram, que um bispo da Universal no Rio de Janeiro morreu após manifestar sintomas semelhantes aos do coronavírus. Mostrou cenas do velório, com religiosos orando e mantendo o distanciamento um do outro, e um caixão que estaria lacrado por causa de riscos da disseminação da doença. Uma pessoa ligada à igreja disse ter ouvido o relato de um pastor confirmando a morte por causa dessa doença. Vários usuários do Facebook também publicaram comentários sobre o suposto falecimento em razão do coronavírus. Procurada, a igreja confirmou a suspeita: “Há 7 anos, o Bispo lutava contra um quadro oncológico. Ele estava há uma semana em casa, de onde foi direto para o hospital após uma piora clínica, e onde veio a falecer. Apesar da suspeita de que a causa do morte seja a Covid-19, é pequena a probabilidade, pois a família toda, com quem passou os últimos dias, não apresenta qualquer sintoma” declarou a assessoria.
Outras denominações também começam a enfrentar o mesmo problema. Um pastor*, da Igreja Internacional da Graça, seria mais uma dessas vítimas, segundo o canal “Repondo a Verdade”, do Telegram, criado pelo ex-bispo Alfredo Paulo e pelos ex-pastores Davi Vieira e Marcelo Roque. O pastor atuava no Jardim Verônia, na periferia da zona leste de São Paulo. Na noite de terça-feira do dia 31, num horário de culto em dias normais, a rua onde funcionava o seu templo, estava deserta e a igreja, fechada. Um vizinho contou que o pastor morrera quatro dias antes, mas não sabia dizer a causa. À reportagem, a Igreja da Graça negou que tenha sido pelo coronavírus.
O pastor e diretor executivo da Convenção Batista Brasileira Sócrates Oliveira de Souza, que coordena várias igrejas – entre elas a Atitude, frequentada por Michelle Bolsonaro no Rio, também teve resultado positivo para o coronavírus, como mostra essa matéria do UOL.
Os dízimos em xeque
Preocupados com a queda na arrecadação das igrejas durante as medidas de quarentena, pastores de megaigrejas, como Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, e R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, têm feito apelos em vídeo e nas redes sociais para que os fiéis paguem dízimos e ofertas. “Continuamos pagando milhares de aluguéis, de parcelas de imóveis adquiridos, de funcionários”, disse Valdemiro. A preocupação também atinge pastores de igrejas pequenas, que fizeram longas viagens de várias partes do país para visitar Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no último dia 2, e pedir a abertura de uma linha de crédito especial para as igrejas. “A igreja evangélica tem muitos pastores […] com seus aluguéis atrasados, com suas despesas avançadas”, disse um integrante do grupo ao presidente. Em conversa com o grupo no cercadinho da portaria, Bolsonaro voltou a minimizar a pandemia. Disse aos pastores que a posição dele desde o começo é que não se pode deixar de trabalhar e novamente colocou a conta do desemprego e da crise econômica nas medidas de isolamento social dos governos estaduais.
Essa preocupação com a queda na arrecadação dos dízimos e ofertas também é uma motivação para a pressão pela reabertura dos templos, na visão do pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco, e cientista político Joanildo Burity, que se dedica ao estudo da religião e da sociedade há mais de 30 anos. O pesquisador ressalta que “muitas dessas lideranças recebem legitimidade dos fiéis baseados nas manifestações de poderes sobrenaturais, curas, milagres”. “Isso coloca a fé em oposição a orientações médicas e científicas.”
A professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense e colaboradora do ISER Christina Vital acrescenta: “Para as igrejas menores o baque financeiro da suspensão das atividades presenciais é maior do que entre as denominações maiores. No caso das igrejas pequenas as ofertas e o dízimo são, muitas vezes, o único meio de arrecadação e manutenção dos trabalhos e único meio de custear o pastorado e de pagar o aluguel dos espaços. Nas igrejas maiores, embora suas estruturas sejam muito mais onerosas, a manutenção dos pastores e das estruturas físicas podem ocorrer por meio dos ganhos com editoras, redes de tv a cabo etc. Chegam ainda as arrecadações online que já eram recebidas. Ou seja, o culto presencial para eles é importante para arrecadação, mas menos até do que para as igrejas menores”.
Mas por que então são justamente líderes de algumas megaigrejas que estão se posicionando mais fortemente contra o fechamento dos templos? Christina responde: “Mais uma vez questões políticas e econômicas travestidas e, às vezes, somadas às religiosas. A maior parte dos líderes que estão neste apoio a Bolsonaro são empresários de diferentes segmentos. Ou seja, não se trata nem do baque financeiros das igrejas, mas nas próprias finanças das empresas de seus líderes”. A pesquisadora aponta ainda, em concordância com Burity, para o fato de que “somado a isso tem um elemento cultural que envolve este ambiente de descrédito científico, um posicionamento público de desconfiança permanente. Isso é totalmente destrutivo para a vida social e está causando muitas mortes nesta situação de pandemia”.
Tentando reverter a crise de financiamento, as igrejas estão se voltando à tecnologia. Criado no fim do ano passado, o aplicativo de dízimos e ofertas online “Eu Igreja” registrou um aumento de 600% nos cadastros de igrejas nos primeiros 15 dias de março, em comparação ao mesmo período do mês anterior, segundo apurou a reportagem. A congregação faz um cadastro sem custo no aplicativo, que recebe um percentual de 4,99% por doação feita através dele. A depender da movimentação financeira da igreja, a taxa pode ser negociada. O membro também faz um cadastro sem custos.
“Em uma semana cadastramos 250 novas igrejas”, contou à Agência Pública Rafael Lázzaro, 33 anos, sócio da empresa. Atualmente, 800 igrejas estão cadastradas, incluindo grandes congregações, como a Igreja Batista da Lagoinha, denominação da pastora e ministra Damares Alves. Sem revelar números das movimentações financeiras, Rafael, que gerencia a empresa com mais dois sócios, todos evangélicos, diz que o aplicativo segue a mesma lógica de outras plataformas como iFood e Uber. “A ideia é modernizar a forma como os fiéis podem contribuir, trazendo mais segurança. Nosso próximo passo é incrementar a plataforma, tornando ela em uma rede social.”
Mas não são apenas dízimos e poder político que impulsionam as igrejas evangélicas a fazerem lobby para manter os templos abertos. O engajamento e a conversão de novos membros também entram nessa conta, segundo Christina Vital. “Como se trata de uma religião de conversão, o contato presencial é muito importante. Neste sentido, o culto é importante para a conversão de novas pessoas e também para esta inculcação de valores, dos códigos de comportamento, de um repertório religioso específico, de estabelecimento e/ou fortalecimento de laços entre o fiel e a comunidade”.
Fechamento de igrejas vai parar na Justiça
Desde que Bolsonaro inseriu, por decreto, as igrejas no rol das atividades e serviços essenciais, o campo de batalha do poder evangélico foi transferido da política para a Justiça. A bancada evangélica mal teve tempo de celebrar: dois dias depois, a Justiça Federal suspendeu a liminar em primeira instância. O Juiz Márcio Santoro Rocha, da 1ª Vara Federal de Duque de Caxias (RJ), ainda determinou multa de R$ 100 mil ao município e à União em caso de adoção de estímulos à quebra do isolamento social.
O problema, explica o procurador da República Julio José Araujo, autor da ação civil pública, é a ausência de parâmetros do governo federal. “‘Atividades essenciais’ não é um conceito elástico que vai mudando, de um dia para o outro. É um conceito que tem alguma rigidez, inclusive restritiva. Se todos os serviços e atividades forem essenciais, não teria razão de existir essa ideia. Elas estão ligadas a um funcionamento básico e mínimo de determinadas situações”, afirmou em entrevista à Agência Pública. Além disso, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que a medida extrapola o poder de regulamentação da União, ao ampliar, por meio de um decreto, medidas que já têm referências constitucional e legal. O objetivo da ação, diz Araujo, seria “impedir que a União use o conceito de atividades essenciais para precipitar, de maneira amplíssima, as medidas de saúde”. Como Bolsonaro já ameaçou publicamente baixar um decreto para acabar com a quarentena dos comércios determinada por prefeitos e governadores, “nisso o Judiciário pode interferir”, diz o procurador. Ele afirma que a liberdade de culto não é objeto da petição – uma vez que as atividades religiosas podem ser realizadas através da internet ou da TV – e que o argumento do MPF foi “jurídico e técnico”.
Bolsonaro afirmou que iria recorrer. “Vai começar uma guerra de liminares”, disse o presidente em entrevista a jornalistas em frente ao Planalto no dia 29 de março. O que, de fato, ocorreu: a Advocacia-Geral da União (AGU) levou a questão ao Tribunal Federal da 2ª Região (TRF2), que suspendeu a liminar dois dias depois, em 31 de março. O voto foi do desembargador Reis Friede, que apoiou abertamente Bolsonaro nas eleições de 2018, chamando a vitória do atual presidente de a “verdadeira cura e renascença nacional”. O MPF recorreu. Ainda não há decisão.
No mesmo dia da decisão do desembargador, outro juiz federal de primeira instância suspendeu o decreto. O juiz Manoel Pedro Martins de Castro Filho, da 6ª Vara Federal do Distrito Federal, também concedeu liminar suspendendo os efeitos do decreto, em resposta a uma segunda ação civil pública, ajuizada pelo MPF em Brasília. Por causa disso, os efeitos do decreto estão, por enquanto, anulados.
A guerra entre a Justiça Federal e o Executivo acirrou os ânimos de diferentes atores – incluindo comandantes militares e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, segundo alguns analistas. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) foi um deles. Em entrevista à Agência Pública, o presidente da associação, Uziel Santana, caracterizou os questionamentos ao decreto como “certo revanchismo de certos setores” contra a atuação do presidente. “Eu entendo a preocupação do Ministério Público. Agora volto a dizer: a igreja é uma organização religiosa, tem personalidade jurídica, tem diversas atividades que realiza – o culto solene público é apenas um desses elementos”, disse o presidente da Anajure. “Isso não era uma questão para o Ministério Público, no primeiro grau, atacar. É uma questão mais ligada à Procuradoria- Geral da República [PGR]”.
O tema, no entanto, assim que chegou à PGR foi encaminhado à Procuradoria no Rio de Janeiro. No dia 27 de março, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e um conjunto de 18 subprocuradores-gerais da República encaminharam uma representação ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo a invalidade do decreto de Bolsonaro. Aras não apreciou o pedido com o argumento de que ações semelhantes já estavam em andamento na primeira instância. Antes de assumir o cargo, Aras assinou uma carta da Anajure em que se comprometia a defender, por exemplo, isenção de imposto a igrejas, a preservação da família como instituição “heterossexual e monogâmica” e a possibilidade de tratamento de “reversão sexual”, chamada de “cura gay”.
O presidente Jair Bolsonaro, e o procurador-geral da República, Augusto Aras
A Anajure orienta que pastores e líderes religiosos sigam as recomendações de isolamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas defende que é importante que os templos estejam abertos para garantir outros serviços prestados pelas organizações religiosas, como a assistência social. Uziel Santana, que também é professor de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Federal de Sergipe, acredita que estados e municípios têm cometido “abusos” ao determinar o fechamento das igrejas. Ele diz que nenhum decreto pode determinar o fechamento das atividades das organizações religiosas. Por isso, a Anajure decidiu lançar o Observatório Anajure das Liberdades Civis Fundamentais. O site reuniu duas denúncias de interrupções de cultos destinados a transmissões online, em Minas Gerais e no Ceará, por agentes de segurança. Já em outro caso, em Fortaleza, um culto com 40 pessoas em um templo da Universal foi interrompido por policiais militares. Para a Anajure, as medidas dos agentes são “flagrantemente inconstitucionais”. A entidade pretende levar os casos à Justiça: “A gente quer começar a apurar e tomar medidas administrativas e, eventualmente, judiciais”, explicou o presidente.
A iniciativa é tão bem vista em setores do governo Bolsonaro que ganhou o respaldo total da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, uma das fundadoras da Anajure. A ministra até mesmo participou de uma live de lançamento da iniciativa, no dia 31 de março, pelo Instagram.
“A nossa ideia é que sejamos um braço – um dedo, na verdade, porque não somos tão grandes assim – do Ministério dos Direitos Humanos, como sociedade civil organizada”, afirmou à Agência Pública o presidente da Anajure.
*A reportagem omitiu os nomes dos pastores para preservar a identidade de seus familiares.