O jejum como mal estar

A “santa convocação” para um jejum nacional no próximo domingo, 5 de abril, tem um caráter político e religioso. Óbvio. A figura que ocupa a Presidência da República aparece no cartaz de divulgação como aquele que convocou a jejuada santa.

Parece-nos que essa figura se colocou – ou foi colocado – como líder dos evangélicos que ainda o apoiam. E inaugura, desse modo, uma novidade em sua catastrófica gestão: a de um “sacerdote em chefe”. Ou seja, a síntese ideal de um líder ao mesmo tempo político, militar e religioso. Um quase semi deus fake.

 A questão não é o jejum em si. Muito menos a oração. Estas são práticas permanentes da espiritualidade cristã. Não precisa nem convocar, pois a oração é como a própria respiração. E não são somente cristãs. Evangélicos, católicos e fiéis de outros credos, certamente, nesse momento em que passamos, estão buscando forças, conforto e sentido a partir de suas crenças e convicções. E, se há uma palavra pastoral para esse momento em que vivemos é esta: Deus está falando à humanidade e também está ouvindo e agindo. A homilia de Francisco nos disse que Ele está no barco conosco.

A mobilização religiosa de amanhã se dá em um momento em que o apoio dos evangélicos ao atual (des)governo está tecnicamente empatado em 37% de aprovação e 35% de desaprovação. O que indica uma acentuada queda deste segmento religioso que já chegou aos 60% de aprovação! Ou seja: parte dos evangélicos também têm bom senso.

O estulto presidente – estulto no sentido bíblico que a literatura sapiencial nas escrituras atribui1 –, busca garantir o que lhe resta de apoio, valendo-se do velho artifício de apropriar-se da religião como instrumento de legitimação. Ou de sobrevivência de um poder em declínio e descrédito.

Sem partido, sem congresso, sem STF, sem boa parte dos ministros, sem os militares, sem boa parte da classe média e sem a mídia de peso. Resta-lhe o grande capital, os bancos, os 1% mais ricos em bilhões de reais e as lideranças religiosas eticamente ambíguas e avarentas. Ele pode ter uma religião ao seu lado, mas não a verdade do que é sagrado.

Fiquemos com Isaías, profeta do século VIII a. C. Os profetas são como os historiadores, incômodos demais, falam coisas que ninguém quer se lembrar e falar, causam mal-estar. Pois Isaías apregoou um tipo de anti jejum que ultrapassava a mera performance religiosa de uso político. É esse o jejum que cristãos deveriam convocar, e não uma demonstração religiosa de exteriorização ou cooptação política. Assim nos diz esse profeta no capítulo 58, versos 5 a 7:

“Será esse o jejum que escolhi, que apenas um dia o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e se deite sobre pano de saco e cinzas? É isso que vocês chamam jejum, um dia aceitável ao Senhor? O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo?”

Prefiro ficar com Jesus, outro a causar mal-estar nos religiosos. Ele sugere que o jejum seja sem propaganda e sem manipulação estética de uma espiritualidade que não existe. Vejamos Mateus 6.16 a 18:

“Quando jejuarem, não mostrem uma aparência triste como os hipócritas, pois eles mudam a aparência do rosto a fim de que os homens vejam que eles estão jejuando. Eu lhes digo verdadeiramente que eles já receberam sua plena recompensa.
Ao jejuar, ponha óleo sobre a cabeça e lave o rosto,
para que não pareça aos outros que você está jejuando, mas apenas a seu Pai, que vê no secreto. E seu Pai, que vê no secreto, o recompensará.”

Assim, propomos um anti jejum no domingo próximo. Vamos orar e até ficar sem comer se assim optarmos, mas sem nada dizer, demonstrar, simular e insinuar. Ninguém tem o direito de se apropriar e manipular a espiritualidade.

Vamos nos solidarizar com os que pisam nos esgotos e ficam infectados, com os idosos que são preciosos em suas experiências de vida, com os profissionais de saúde que lidam diretamente com o vírus, com muitas pessoas que estão sós no isolamento, com o meio ambiente que está descansando da humanidade nessa quarentena ecológica, com a família de Zezico Rodrigues Guajajara um líder indígena assassinado essa semana no interior do Maranhão.

Jejum, nesse momento, chama-se solidariedade, distribuição de renda, sistema de saúde digno e recursos para pesquisa científica.

E ficar em casa!

1. Insensato, tolo, néscio, não sabe escutar, fala sem respeito e bom senso, de ateísmo prático, não aprende provocando danos, calúnias e prejuízos. Ec 2.15; Pv 10.13,14,18,23; 13.16; 15.7,21; 17.10,21; 18.13; 19.29; 26.11; 27.22; 29.20; Sl 14.1; 92.6. Ver tb: Eclesiástico 22.14; Mt 7.26, Lc 12.16.

Fonte imagem em destaque: https://bit.ly/348lCRm

Calvino e as Fake News

O contexto da Reforma foi de muitos conflitos no campo da comunicação. Por meio da imprensa recém inventada, muitas imagens de caricaturas e escritos circularam na Europa divulgando, de ambos os lados, protestante e católico, acusações, calúnias, impropérios, ameaças e mentiras. Defenestrar o inimigo era uma estratégia para impor uma verdade por meio, se possível, da mentira. 

Defensor da tolerância aos protestantes franceses, Calvino tentou persuadir “ao Potentíssimo e Ilustríssimo Monarca Francisco, Rei Cristianíssimo dos Franceses, Seu Príncipe”, da inocência dos protestantes diante de muitas acusações, escrevendo sua maior obra, A Instituição da Religião Cristã, encerrada no ano de 1559.  

Seu objetivo primeiro foi:

… preparar e instruir os candidatos ao aprendizado da palavra divina da sagrada Teologia, para que possam ter acesso fácil a ela, assim como prosseguir livremente em seus passos, pois que considero ter reunido uma tal suma da religião em todas as suas partes e tenha classificado em tal ordem, que qualquer um que a considere retamente não terá dificuldade em estabelecer e buscar o que é principal na Escritura, e possa aquele, ao final, referir tudo que nela está contido.1 

João Calvino

Evidencia-se a lógica calviniana em estruturar uma obra de forma racional obedecendo uma ordem de apresentação temática em partes e classificada com a finalidade de “estabelecer e buscar o que é principal na Escritura”. Os dois livros reunidos em um só tomo explorou a suma ou o sumo do que as Escrituras ensinam a fim de preparar e instruir os novos aprendizes da fé.  

No entanto, outro propósito se apresentou na obra, qual seja, a de orientar o monarca e alertá-lo quanto aos equívocos das acusações, calúnias, ardis e mentiras proferidas. Dirigindo-se ao rei, Calvino reiterou o objetivo de “ensinar alguns rudimentos”, para “ser ensinado de modo fácil e simples”, não somente aos franceses, mas ao próprio soberano na condição de um principiante que deveria atentar para as fakenews contra os protestantes franceses: 

Evidentemente se alguém, com o pretexto de excitar o ódio a essa doutrina da qual procuro expor a vós a razão, der como pretexto que, condenada por toda ordem de cálculos, já tivesse sido criticada por muitas sentenças do foro, não teria dito se não que, em parte, foi violentamente abatida pelo conluio e potência dos adversários, e em parte insidiosa e fraudulentamente oprimida por mentiras, ardis e calúnias. É violência que, por pretexto, não declarado, sejam levantadas contra ela sentenças sanguinárias; fraude, que seja, acusada de sedição e de malefícios sem merecimento.2   

Assim, Calvino incidiu contra a rede de propagação de mentiras sobre os protestantes na França, apelando para o bom senso e a verdade do rei, bem como dos leitores.  

[1] CALVIN, Jean. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. Trad. Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 12. [1] CALVIN, Jean. A instituição da religião cristã, Tomo I, Livros I e II. Trad. Carlos Eduardo de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 14.