O pensamento simplório e seu uso no fascismo atual

Um governo autoritário não tem forças para impor sua autoridade se não houver, em algum nível, apoio popular. Obviamente que sempre há, na elite, quem realiza a propaganda de tal governo e quem o sustenta moral e financeiramente. Mas é nas camadas mais populares que um governo precisa exercer sua confiança, do contrário, o povo fica, com facilidade, próximo da provocação de alguma revolução, por parte de outros líderes.

Portanto, o fascismo precisa ser atraente, antes de ser autoritário, ou deve disfarçar seu autoritarismo. É necessário que ele consiga tocar no ponto sensível de uma camada do povo para, assim, lhe ser apresentado como solução. Nesse sentido, o pensamento simplório do fascista é bem atraente. Para todas as dificuldades complexas que uma sociedade plural e desigual possui, o fascismo tem a solução simples. Simplificar é uma forma de tornar compreensível um problema complexo. Simplificar, muitas vezes, por isso, é incapacitar de ver todo o conjunto. No caso do fascismo, porém, “simplificar” ganha outro sentido. Trata-se de tratar um problema complexo como se ele fosse simples. Em seu discurso, diria que “A complexidade é invenção de quem quer manipular o povo. O problema, na verdade, é bem simples e fácil de resolver”. O fascismo é simplista por excelência.

Por conta dessa dificuldade e orgulho obscurantista do fascismo, é necessário simplificar tudo: o povo não é composto por diversas nações e culturas. O povo é um só e quem quiser fugir dessa regra cultural, que deve identificar a todos, precisa ser considerado fora do povo; Cidadão de bem é todo aquele que segue essa cultura, o contrário é bandido, marginal, inimigo, ou alguém que precisa ser convertido.

Com o poder do pensamento simplório, o fascismo precisa apenas tocar na “ferida certa”, para que possa ser apresentado como solução. No nosso caso (e no passado também): corrupção e violência. O fascismo não é imposto na marra, ele surge do sentimento de frustração e desesperança. Esses dois temas tocam no coração do brasileiro exatamente nesses dois sentimentos: frustração em ter confiado no PT ou em Lula; frustração pelo desemprego que começava a crescer; desesperança por não encontrar nenhum outro em quem votar, pois “todos são iguais”. Esses são alguns pontos em que esses sentimentos foram explorados.

Pensar de forma complexa, diversa e plural não faz parte do fascismo. Deve-se, porém, fugir da ideia de que somente pessoas sem acesso ao conhecimento que são atraídas pelo fascismo. Não. Hitler tinha, ao seu lado, diversas pessoas com currículo acadêmico invejável. O que se deve concluir é que formação acadêmica não define caráter e nem capacidade de reflexão complexa e crítica. A formação acadêmica ajuda, incentiva e desafia. Mas apenas àqueles que se sentem ajudados, incentivados e desafiados pelo pensamento crítico e pelo método científico.

O que isso tudo tem a ver? Sentimentos como compaixão, empatia, simpatia e o que mais pudermos usar como proximidade sinonímica, nascem de uma capacidade de pensar complexamente. Não se pode ter compaixão por alguém sem um esforço mental (por vezes, aparentemente, natural) que permita imaginar-se no lugar do outro sob as mesmas circunstâncias. Quando alguém diz “eu no lugar dele não teria roubado pra comer” precisa, antes de tudo, saber se pensou mesmo estar sob as mesmas circunstâncias, não apenas em situação de fome, ou vontade de comer. Justamente por não conseguir fazer esse exercício, o fascismo simplifica crimes e atitudes que considera imorais, a exemplo, um argumento contrário à descriminalização do aborto: “Não quer ter filho? Use preservativo! Feche as pernas”.

Essa imperatividade das palavras fascistas, associada à solução fácil do problema complexo, tem ligação com sua mente simplória. Entende que o problema é tão simples e a solução tão óbvia que torna-se intransigente e intolerante. Fora de si, não há um outro mundo possível e nem outras possibilidades: Há um mundo errado e erro se combate. O discurso imperativo é justamente fruto desse desejo de combater aquilo que considera errado. O fascismo transforma uma opinião em verdade dogmática. A solução não deve ser condicionada ou pensada, deve ser implantada, doa a quem e no que doer.

Daí nasce a autoridade do fascista dos nossos dias. Não em ter dito coisas erradas e que pessoas que pensam errado aceitaram. O fascismo não é um dogma. Ele apenas tocou na simplicidade. Sua forma de atuação, porém, segue bem fiel ao seu arquétipo fundado por Mussolini.

Não há outra forma de entender um homem que tem apoio ao ir em uma homenagem/protesto e retirar as cruzes que eram símbolos dos mortos pela pandemia da Covid-19. A dor dos feridos se torna menos importante do que o erro a ser combatido. O mais importante é desmascarar a grande mídia, o comunismo e a farsa que se instalou no país. O erro não pode ser tolerado. Não deve haver gentileza e nem solidariedade com quem está “do outro lado”. Não há crédito na quantidade de mortos. E mesmo que exista um número alto de mortos, esse número é justificado por “N” equações que se imaginar e que, sequer, foram realizadas.

Há maldade? Há preconceito que saiu do armário? Essas pessoas são tão ruins e tão insensíveis assim? Depois que Hitler morreu e foi descoberto tudo o que aconteceu, muitos que o apoiavam diziam não saber o que estava ocorrendo. Diziam que se soubessem não o teriam apoiado. A questão é que Hitler tocou na ferida certa e soube conduzir um povo para o ódio disfarçando-o de dever civil. Neste ponto, me lembro das palavras de um alemão, na época do Terceiro Reich, relembrado por Madeleine Albright, em sua obra sobre o fascismo:

“Viver esse processo é ser absolutamente incapaz de reparar nele – tente acreditar em mim, por favor… Cada passo era tão pequeno, tão insignificante, tão bem explicado ou, às vezes, ‘lastimado’ que, a não ser que você estivesse desde o início a observar de fora, a não ser que entendesse aonde… poderiam levar um dia todas aquelas ‘pequenas medidas’ a que ‘alemão patriota’ algum poderia se opor, não seria capaz de enxergar o desenvolvimento diário da coisa, assim como um fazendeiro não percebe o crescimento de seu milho…

E um dia, quando já é tarde demais, seus princípios, caso tenham importância para você, o tornam de assalto. O peso de se iludir tornou-se forte demais, e algum incidente menor, no meu caso o meu filho, praticamente um bebê, dizendo ‘seu porco judeu’, faz tudo desabar de uma vez, e você repara que tudo, tudo, mudou e mudou por completo debaixo do seu nariz.”

Não dá pra dizer o que essas pessoas são sem considerar essas palavras. Os que, porém, conseguem enxergar tudo, ou parte do tudo, precisam lutar com todas as forças para que tudo não mude por completo debaixo de seu nariz.  

Foto de Capa: Reprodução/ Carta Maior

Sobre Economia e Saúde: pelo fim da dicotomia, em tempos de pandemia

Há muito se tem discutido e exposto a falsa dicotomia entre salvar nossa economia ou cuidar da saúde. Embora, por si só, já seja estranho que se coloque em risco a vida das pessoas para poder “salvar a economia”, aqui há um erro grande. Se proposital, não há como saber. Porém, se sim, estamos lidando com líderes que traem conceitos, traem projetos e traem a própria inteligência e consciência, em nome de escondidas e “tenebrosas transações”. No caso de não ser proposital, estamos diante da ignorância. E quando a ignorância governa, quem sofre é o povo. Ou seja, nas duas opções, estamos em perigo.

Economia, em sentido estrito, significa “a arte de gerir um lar” (oikos = casa; nomos = lei, normas). Na gerência do lar, todos sabemos, dinheiro, saúde, regras de convívio e lazer fazem parte. Não é sábio gerenciar apenas o dinheiro e não se preocupar em educar os filhos. Não há sabedoria em escolher bons alimentos, mas não se respeitar o horário de cada refeição. Também não se compra sobremesas para agradar às crianças e se evita de ensiná-las a comer e apreciar legumes, verduras e frutas.

Economia, portanto, não é dinheiro. Não é setor financeiro. Sequer é empresariado. Economia é tudo o que fazemos nas ruas: como andamos; como saudamos aos outros; onde comemos; onde vestimos; se damos ofertas na igreja; se damos ou não esmola ao morador de rua; qual condução pegamos ou se pegamos condução; se compramos drogas ilícitas; se seguimos à receita médica; se vamos sentar para assistir televisão enquanto comemos, ou se a hora do almoço é a hora de apenas estar com a família; se vamos mandar mensagens para outras pessoas enquanto estamos no bar, com amigos; qual partido apoiaremos nas eleições; qual candidato rejeitaremos; e até se vamos ou não postar um texto em uma Rede Social. Nossa moral e nossos valores éticos definem e fazem parte dos rumos econômicos. Triste do economista que vê a economia separada da política, do cotidiano humano, animal, vegetal, ou, ainda, dos fenômenos naturais. Triste, também, do político que trata a economia como domínio de um ou mais setores com interesses próprios.

Diante da pandemia que vivemos, ao colocar para o povo que é preciso olhar a saúde sem perder de vista a economia, se cria uma compartimentação que gera confusão e debate onde deveria haver acordo óbvio. Cuidar da saúde do povo não é, apenas, cuidar para que ele tenha um contágio menor possível de Covid-19. Cuidar da economia não é colocar o trabalhador para andar e exercer seu ofício na rua, correndo o risco de contágio.

Cuidar da saúde do povo inclui cuidar da saúde mental desse povo e do seu alimento. Coisas que não ocorrerão se não houver emprego ou dinheiro para pagar as dívidas. Mulheres estão trancadas em casa, por vezes, com homens violentos; crianças estão trancadas em casa com abusadores; desempregados estão pensando em suicídio; as contas não param de chegar e não deixam de aumentar seus juros.

Entender que a quarentena imposta é a única forma de cuidar da saúde da população é um erro. Descuidar que esses cuidados aqui são, por definição, cuidar da economia, é ignorância ou erro e, nos dois casos, um perigo enorme.

Ignorar que esse povo é quem movimenta todos os tipos de concepção econômica, que merece e tem o direito de ser tratado com dignidade, é uma vergonha para qualquer líder.

Por definição, cuidar da economia é cuidar da saúde do povo. Cuidar da saúde do povo é garantir um bom futuro para a economia.

Somente um capataz, sob ordem do senhor da terra, ordena que escravos trabalhem a despeito do perigo que correm. Somente alguém pouco preocupado com a economia, em seu sentido rico, coloca os trabalhadores na linha de frente, sem real necessidade. Economistas como Henrique Meirelles e Raul Velloso defendem, por exemplo, imprimir dinheiro. Não é o momento de se preocupar e não haverá, segundo eles, problema com inflação, com o que estamos vivendo, ao tomar essa decisão. Tudo que é importante se mostra relativo, diante das situações e a situação atual é de emergência e responsabilidade.

Mesmo economistas liberais e o mundo liberal se dobram diante da necessidade de um Estado que saiba gerir e saiba se preocupar com seu povo. Ao invocar essa falsa dicotomia, o governo quer dividir com a população uma responsabilidade que ela, na Constituição e no voto, confiou a ele. Cabe à população, apenas, seguir as regras de distanciamento. Cabe ao governo, e apenas a ele, conseguir levantar ou gerar os recursos para bancar esse povo que morre e teme a morte dia pós dia.

É preciso ampliar o conceito de Economia, ou resgatar seu conceito. E é preciso tirar das costas do povo sofrido a responsabilidade de morrer em nome do sustento de um sistema financeiro que se pretende dono do governo e dono do conceito econômico. Essa tutela da democracia precisa parar. Vários ensinamentos se tiram dessa situação que o mundo vive. Um destes é que nosso sistema socioeconômico, onde o Estado é jogado de lado e os setores privados trabalham como “senhores da terra em um mundo que legaliza escravos”, não funcionou. Todos, nesse momento, precisam do Estado e o Estado brasileiro não pode se colocar como exceção nesse processo. Portanto, junto com tudo isso, é preciso se imprimir, mesmo que pela força da Lei ou da Justiça, uma obrigação ao governo para que lide com a situação de forma decente e digna. Como o povo precisa, tem direito e merece.